Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
A moldura
Turquia, Istambul, 1996
Uma imagem pode trazer-nos o cheiro da fome, o desespero da pobreza, a sensação de que não há saída para além das madeiras velhas e carcomidas do bairro que viu a vida nascer. Uma imagem parece encerrar a vida numa moldura imutável, delinear-lhe o presente e o futuro acorrentado a esse presente. O passado, como os sonhos, está entranhado na clausura e nos tons negros da implacável imagem.
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Uma questão de bolas
Fotografia por David Alan Harvey, Honduras, 2002
Quando escuto as vozes dos guardiões do politicamente correcto e as suas críticas à futebolização da sociedade, sorrio. Quando os escuto verberar a tirania que este fenómeno exerce sobre as preferências das massas, só me lembro desta magia. A magia que um simples objecto esférico exerce sobre as crianças, a magia que apaga a fome, o medo, a tristeza. Soubessem ou quisessem esses guardiões fazer assim felizes as crianças e podíamos esquecer as bolas. Mas na falta de bolas desses grandes senhores deixem as bolas com as crianças.
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Pin(o)up
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Não basta disparar
“The Hunter”, 1960, por Nikolas Koslovskiy
Há quem diga que a fotografia é a arte mais fácil, mais democrática, ao alcance de demasiada gente, inclusive daqueles a quem a divina providência negou o talento. É exactamente por esses motivos que considero a fotografia, como arte popular, a mais selectiva das artes. Porque se hoje qualquer maduro pode capturar centenas de imagens em poucos segundos, já acertar com os disparos na inimitável beleza, no cerne da condição humana, naquele milésimo de segundo que revela a verdade de um momento único, esse tiro só está ao alcance dos eleitos.
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She´s got the look
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A possibilidade de uma ilha - a ilha da felicidade
“Durante a primeira parte da vida, só nos apercebemos da felicidade depois de a perdermos. Segue-se uma idade, uma fase transitória, na qual já sabemos quando começamos a viver uma felicidade, que acabaremos por a perder”.
Esta é daquelas reflexões que dispensam aprofundamentos ou embelezamentos. É clara como a água. A felicidade paira constantemente à nossa volta, mas envolta na neblina da ironia de que só a vida é capaz teima em desencontrar-se do nosso tempo e espaço. Se na tenra idade a velocidade que imprimimos à vida acelera esse desencontro, a experiência torna-nos descrentes, azedos, avessos ao reencontro com o que nunca se alcançou. A possibilidade da felicidade perde-se na ilha em que nos tornámos.
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Estoril 3 - Sporting 1
Quando um adepto fiel do Sporting descobre que a sua equipa está a jogar através de um zapping casual, poucas dúvidas haverá que os dias no reino do leão não são famosos. Peguei no jogo a partir dos 10 minutos, embalado por um golo que diziam os comentadores ter sido habilmente construído pelo miúdo Bruma – uma pérola que se arrisca a fechar-se na sua concha, porque nenhuma pérola brilha se o colar que a sustenta for pechisbeque - esperançoso de ver renascer o meu Sporting nos pés daqueles miúdos que transbordavam vontade. Mas se a vontade sobrava, a ingenuidade e a desconcentração próprias da idade traíam tudo o resto. Não é aceitável que o único suporte adulto desta equipa seja Rinaudo, não é possível ter um guarda-redes sempre a fazer de super-homem.
Para piorar as coisas, Jesualdo também começa a acusar a pressão e os maus resultados. Se as preocupações e comentários que emitiu sobre questões extra-futebol já não me tinham cheirado lá muito bem, as declarações na sala de imprensa em que critica abertamente Wolfswinkel e Rui Patrício já me cheiram mesmo a esturricado. Não é disso que a equipa e os rapazes precisam, Professor, esta era a hora para você tirar uns coelhos da cartola e dar o seu contributo táctico e estratégico, alguma mais valia a que esta equipa com valor mas demasiado jovem se pudesse agarrar. Custa olhar para o outro lado e ver uma equipa barata, modesta, mas bem posicionada e tecnicamente evoluída a vulgarizar o Sporting. Custa perceber que jogadores como Licá e Steven Vitória dariam muito jeito a este Sporting, que seriam bem mais baratos do que muitos centrais e avançados que lá temos e que não têm metade do seu valor. Custa não ter um jogador a marcar livres como o Carlos Eduardo do Estoril. Custa esquecer-me do dia em que o meu Sporting joga.
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Cenas da vida quotidiana - Tens lume?
Aquela fugaz chama, aquele beijo separado pelo filtro, o papel de cigarro e o veneno da nicotina representavam bem mais do que qualquer transeunte desatento saberia descortinar. Por trás do fumo canceroso daqueles dois cigarros estavam anos de duas vidas cómodas, mas irremediavelmente desfasadas da natureza daquelas duas mulheres. Dois maridos para trás, quatro crianças passadas (duas para cada uma), tinham redescoberto o que de facto as fazia sentir vivas. A noite, os sons, as luzes, os olhares furtivos, a caça. A tesão de sentirem o perigo de não saber quem as olhava e desejava, de não fazerem a mínima ideia de quem estava por trás dos olhos irresistíveis que olhavam, do corpo rijo e bem definido que cobiçavam. Numa pista de dança deitaram todos aqueles anos fora. Ao som da joie de vivre, de uma dose de incomensurável egoísmo, de um shot de insana liberdade. Ninguém disse que a vida era fácil e que os actos, mesmo os mais ponderados, não tinham consequências.
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Os encantos da terra batida
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É tempo, é mais que tempo
Apetecia-me mandar para as origens da criação materna tanta gente, mas tanta gente que me dispenso de enumerar, por falta de espaço e de paciência. Não quero, recuso-me a ser mais uma voz a lamuriar-me pela afronta que é o recibo de ordenado deste mês. Mas custa-me muito, mesmo muito, imaginar que tanta gente de quem gosto, que conheço, gente anónima com quem me cruzo, vai deixar de poder pagar algumas contas, vai ter que voltar para casa dos pais, pedir-lhes ajuda, estender a mão à solidariedade familiar ou de amigos para poder alimentar ou vestir com um mínimo de dignidade possível os filhos. Felizmente ainda não cheguei aí, mas não deverá faltar muito, basta que esta política se mantenha, basta que estes politiqueiros não tirem as palas dos olhos. Não é o momento de discutir a nossa culpa nesta recessão sem fim e que cresce como o monstro que dizem querer extinguir, é o momento de olhar para o que as aclamadas decisões corajosas, racionais e implacáveis dos nossos governantes estão a fazer ao tecido empresarial e social deste país, à motivação dos trabalhadores e das próprias chefias.
É tempo para nos deixarmos de paliativos contestatários e Grândolas Vila Morenas sempre emocionantes, é tempo de pormos um travão nesta descida sem fim para o abismo. Como? Sendo conscientes e consequentes. Alertando consciências e provocando consequências. Pensem muito seriamente nisso, na melhor forma de o fazer. Pensem e depois deem o passo em frente - em vossas casas, nos vossos trabalhos, na mesa de voto, nos valores que transmitem aos vossos filhos, nos exemplos que dão. Depois disso, sim, depois de mudarmos algo em nós e no que nos rodeia podemos já juntar-nos aos magotes em manifestações ruidosas e que tão bem ficam em fotografias dos jornais de todo o mundo. Antes disso são só tiros de pólvora seca.