Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
"Mood" de segunda-feira, apesar do café, por Helmut Newton
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Retrato gourmet de porco pós-moderno em cama de nação abananada
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Au revor et merci, René
Não podia ir de fim de semana sem partilhar que não sou muito de sentir mais as mortes das vedetas televisivas do que a de qualquer outro cidadão do universo. São pessoas, não me são íntimas, posso ficar nostálgico mas não sou de alardear a minha tristeza inconsolável porque morreu alguém que me fazia companhia nas noites frias, do outro lado do écran. Isto não é para dizer que estou muito triste pela morte do grande René Artois (para mim, para a família dele era o Gordon Kaye), é apenas para recordar com um sorriso o humor, a graça e a traquinice encantadora com que ele berrava pela sua Michelle, no inesquecível “Allo Allo”. Obrigado pelas gargalhadas, René, valeu!
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Bom fim de semana, com muita actividade e a bater umas bolas!
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S-U-C-K-E-R-S!
Suckers, idiotas, arrogantes, cegos, ingénuos. Não os que votaram em Trump, mas sim os que se recusaram a ler os sinais de insatisfação do povo, os que juraram a pés juntos que tamanha besta nunca poderia chegar a presidente da maior potência mundial. Idiotas os que nada fizeram para mudar as causas do descontentamento das pessoas, arrogantes os que julgaram que as pessoas se conformariam ao pouco que os de sempre tinham para lhes dar, cegos os que não quiseram ver os sinais claros de que a vontade de mudança fervilhava, ingénuos os que se julgaram infalíveis. A culpa não é de Trump, é de quem fez com que ele fosse lá colocado! E quem contribuiu para isso fomos todos nós, meus amigos, todos nós que em nada contribuímos para que todos nós vivêssemos um bocadinho melhor.
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O mergulho
Nunca saberia se aquele seria o momento certo para o mergulho desejado, para a fusão tão esperada no abraço dos elementos, a comunhão mais inexplicável de sensações. Desconhecia igualmente se quando sentisse que aquele era o momento os elementos estariam disponíveis para a receber. O som das ondas devolvia-lhe a memória de mergulhos passados e, recordando toda a beleza e plenitude desses momentos, sabia que o próximo seria sempre único e inigualável. Contudo, hesitava. Porquê? Porque essa dança de avanços e recuos era também o que fazia do momento O momento.
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Anjos, demónios e a paz dos dias de hoje
Num ecossistema em que predominam pessoas de boa índole, trato dócil e a temperança nas relações interpessoais (família, emprego, grupo de amigos, comunidade local) frequentemente se deteta alguma dificuldade em denunciar possíveis fontes de perigo ou comportamentos desviantes. Os membros do grupo sentem que os laços são fortes e estáveis pelo que não vislumbram (ou preferem não o fazer) que os indícios do desvio à estabilidade grupal não são de desprezar. Essa ausência de acção consolida-se e cristaliza-se após a concretização do que se pretendia ocultar. Isso sucede porque os elementos do grupo/comunidade não querem sujeitar-se à exposição de quem põe o dedo na ferida, convictos de que se não pensarem ou fizerem algo sobre o tema pode ser que ele caia no esquecimento ou se esfume por si só. Procura-se que as tentações e a sua concretização pecaminosa, a suceder, fiquem na esfera de cada qual, mesmo que de todos sejam conhecidas. Se não se fala não existe. O silêncio, os olhos fechados e os bicos calados são a regra de ouro de uma organização pacificada. Quem diria que a fonte da paz é, afinal, a hipocrisia.
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Da série questões sem resposta
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Dias desgraçados
O melhor cronista português, Ferreira Fernandes, a escrever sobre o quão injusto pode ser o mundo e maus os homens. Sobre Trump e os dias desgraçados que escolhemos viver. Tão belo e tão triste.
“Um dia, vi um homem parar um carro pobre, numa estrada de terra vermelha, à entrada de uma ponte. Sobre um pilar estava uma bacia de esmalte rachado e nela laranjas pequenas. "Quanto?", perguntou o homem com uma camisa modesta. O miúdo negro disse: "Dois angolares." Sem outra palavra, o homem abriu a mala do carro. O miúdo fez rolar as laranjas na mala. O homem pôs na palma da mão estendida uma moeda de cinco tostões, um quarto do preço pedido. O miúdo nem esboçou um protesto, ficou na berma a ver o carro partir e a sentir a poeira assentar.
Um dia, li um camponês russo a falar com um dos irmão Karamazov. Tudo no camponês era subserviência. E tinha o filho ao lado. O Karamazov não bateu, esmurrou ou pontapeou o camponês - gestos brutos que poderiam ter passado por luta violenta. Esbofeteou-o, com pancada seca e calma, de quem sabe que nunca teria reação. Nada doeu mais do que o filho ao lado.
Um dia, na ala militar do aeroporto de Bogotá, estive na conferência de imprensa dada pelo embaixador americano. Ele falou sobre a luta contra os narcotraficantes e a esperança de apanhar em breve Pablo Escobar, o capo de Medellín. Depois, o embaixador disse que tinha mais declarações a fazer mas essas eram para os americanos e os da imprensa estrangeira. Os jornalistas colombianos saíram, cabisbaixos, expulsos em sua casa.
Um dia, entrevistei um líder guerrilheiro, num jango, enorme cubata circular. O líder esperava--me ao fundo, e as paredes do jango estavam cheias de dirigentes guerrilheiros e conselheiros do líder. Ao entrar, reparei, nunca soube porquê, num jovem de barba escassa e casacão escuro (era cacimbo, inverno austral), sentado à entrada. Finda a entrevista, o líder acompanhou-me à entrada, braço sobre o meu ombro. De repente, fez-me rodar e encontrei-me frente ao jovem de casacão, já de pé. "O senhor jornalista sabe quem é?", perguntou o líder. Adivinhei mas disse que não. "É o Wilson que vocês em Lisboa dizem que matei. Não o quer entrevistar?", disse o líder, e logo apareceram dois microfones. "Não entrevisto presos", disse eu. O jovem tinha os olhos mortos e foi mesmo morto, semanas depois, ele e a família.
Um dia, eu ia de elétrico e vinham duas peixeiras da Ribeira. Elas eram cabo-verdianas e falavam crioulo entre elas. Ao passar pelo Rato (os elétricos ainda por lá passavam), um passageiro endoidou de ódio e pôs-se a mandar as mulheres "para a terra delas." Havia lugares vagos mas elas não tinham ousado sentar-se por causa do cheiro das saias largas. Os insultos do homem apanhou--as com português curto e calaram qualquer resposta. Pousaram os olhos no trabalho, nas canastras deitadas no chão. Nem pareceu terem dado conta dos pescoços que não se viraram. Mas deram.
Um dia, eu estava com um militar, que então era do meu lado, a dizer a uma pessoa detida, porque do outro lado, que sim, podia pedir ao soldado de plantão para ir comprar cigarros à messe. Regressado o soldado, o preso deu--se conta de que, afinal, também não tinha fósforos: seria que lhe podiam acender o cigarro? "Ah, era para fumar? Isso, na cela, não pode", ouvi o "meu" militar a dizer, gozando com o detido confuso.
Um dia, era noite de verão, eu ouvia um homem a assobiar numa esplanada. Ele estava sozinho à mesa e bebia cerveja. Assobiava mambos e boleros, as janelas abriam-se e às varandas assomavam suspiros. Ele sabia e gostava do seu sucesso, na sua rua, mas fazia de conta que não o via. No fim de um bolero de Lucho Gatica, ele ia aclarar a garganta com um gole mas o copo voou até ao chão da esplanada. A mulher do homem do assobio estava com uma mão à cintura e a outra a apontar a casa: ala! Ela nunca produziu outro som, senão o copo a estilhaçar-se. Sempre calada, com o silêncio da autoridade que nunca conheceu resposta. Ele ia à frente dela, cabeça enfiada nos ombros, olhando o passeio, indiferente à rua e à humilhação. Mas não estava.
Um dia, um guarda-costas que me acompanhava em Argel, perguntou-me se eu sabia o que era uma bûche de Natal. Disse-lhe que sim. Era o bolo em forma de tronco de árvore que os franceses comem no fim do ano (como o nosso bolo-rei). Por essa altura, os terroristas islâmicos punham bombas por toda a Argélia e degolavam os ímpios que se expunham. O meu guarda-costas era bom muçulmano, mas tinha saudades da bûche, da infância com vizinhos franceses. No Natal passado tinha sabido de uma padaria que as vendia às escondidas. Foi lá, saiu pela porta de trás mas julgou adivinhar olhares ameaçadores. Abriu a camisa e escondeu o bolo, coseu-se às paredes e apressou o passo. Entrou em casa e tirou o bolo amassado, o chocolate já delambido - os filhos e a mulher olhavam-no, e ele chorou, derrotado. O meu guarda-costas era tropa de elite.
Um dia, depois desses dias que me formaram, hoje, eu dei--me conta de que um homem que varreu os adversários do seu partido amesquinhando-os, que apoucou deficientes, que rebaixou o heroísmo autêntico na guerra de um correligionário seu (ele, que para fugir dessa mesma guerra pretextou doenças que não tinha), que se me apresentou, em palcos públicos, sem compaixão por pais que perderam o filho, que achincalhou as doenças, verdadeiras ou inventadas por ele, da adversária, que levou a humilhação como a arma principal da luta política, um dia, dizia eu, vou ver esse homem a tomar o poder mais poderoso do mundo. Contra ele recuso-me, neste dia, a discutir as ideias dele, políticas, económicas ou ecológicas. A partir de amanhã, certamente. Hoje, tenho a dizer, tão-só, que é um dia desgraçado.”
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O gato
Fotografia por Sam Haskins
- Não consigo entender porque fugiste.
- Não era feliz.
- Porquê?
- Porque sabia que toda a minha inconstância não permitia que fosses feliz.
- Não percebo onde foste buscar essa ideia. E viver sozinha com um gato, faz-te feliz?
- A mudança tem sido uma constante da minha vida. Não sei porque ainda aí estás. Acho mesmo que na minha vida em permanente mudança és a única coisa duradoura, que fica.
- E isso faz-te feliz?
- Sim, não sei porque continuas aqui, mas gosto que aqui estejas.
- Eu gosto como tu és hoje, como gostava de como eras ontem, há 2 anos…A vida é mudança, só temos que saber entendê-la, entranhá-la.
- Por vezes sinto-me louca no meio deste constante movimento, mas se calhar és tu o louco por ainda permaneceres onde sempre estiveste.
- Eu acredito que os loucos, num mundo em permanente mudança, são aqueles que nunca mudam.
- Se calhar a mudança ou não-mudança depende menos da nossa vontade do que julgamos.
- Talvez. Mas a aleatoriedade das vontades e das mudanças pode ser uma bela forma de nos desculpabilizarmos por não mudarmos.
- Eu sei que vivo eternamente na corda bamba. Posso fazer por perder peso, mas se quiser medir 1.80 já não depende de mim.
- Não te esqueças de encher a tigela de leite. Há coisas que não mudam, os gatos não deixam de ter fome, eu não deixo de gostar de ti.