Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
A doce meretriz
O amor, essa puta sem dono nem rosto, é a centelha que nos alumia a via. Tudo o que somos e fazemos tem por fonte o excesso ou a ausência do amor, a sua busca, os enganos e desenganos com que essa doce meretriz nos tenta, fazendo de homens fracos lobos esfaimados, criancas ingénuas ou velhos sem fome de viver.
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Da série "questões a não colocar, em hipótese nenhuma, a esses bichos"
Há uns dias, uma amiga que partilha casa com uma colega, revoltada com as desgraças dos contratos com as MEO´s e TVCabo´s cá do burgo, perguntava-me, do auge da sua irritação, o que raio é que duas mulheres vão fazer à noite, sem TV e sem Wifi? Olhei para ela, tentando esconder bem no fundo de mim a resposta que me subiu diretamente à boca (não diretamente vinda do cérebro, esclareça-se, até porque se assim fosse tinha descido e não subido) e lá consegui disfarçar (???), sugerindo a manicure ou palavras cruzadas. Mas porque é que fazem estas perguntas tão difíceis a bichos tão estranhos como os homens?
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Sexta-feira, contra os excessos de energia
Por vezes só queremos mesmo que chegue sexta-feira. Por vezes nem nos apercebemos do cansaço físico e psíquico, de tão envolvidos que estamos nas tarefas, projetos e minudências que nos provocam esse estado. O excesso de desporto e de trabalho, a desmesurada preocupação com tudo e com todos, como se por acaso fossemos nós eventuais Deuses que pudéssemos mudar o rumo do que já está tantas vezes destinado. Por outro lado, esquecemo-nos demasiadas vezes que a energia de quem dá pode provocar atritos em quem recebe, resultando daí que a energia positivamente emitida pode ter efeitos negativos. Sexta-feira, venha ela.
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A boneca de porcelana
Como eram belos os tempos em que nada era imediato, tudo envolvia dedicação, como o simples gesto de acertar com a agulha do gira-discos na ranhura certa do vinil. Seduzir não era carregar num botão que nos dirigia automática e friamente para a música pré-definida, era cuidar do disco para que não tivesse riscos e afagar a agulha em cada música, era tocar sem pressa num corpo de porcelana, era toda uma envolvência que simbolizava o privilégio de viver esse momento único e irrepetível. Hoje tudo é fácil, os engates estão à distância de um touch, uma queca pode ser só um desabafo de quem está aborrecido. Que saudades do vinil.
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O manto sagrado da cegueira
As razões porque escrevo cada vez menos sobre futebol são diversificadas e não merecem que se perca muito tempo com elas. Ainda assim, abro aqui uma excepção para falar do que costumo chamar “o manto sagrado da cegueira”. Como sabem, manto sagrado é como alguns patetas apelidam a camisola do Benfica. Cegueira é o que está associado aos que a idolatram e, infelizmente não só a esses, mas sim também a grande parte dos profissionais que escrevem e peroram sobre os feitos e desfeitas da nação benfiquista. Não sei se é por comungarem do amor pelo manto, se é por terem a percepção que dizer a verdade sobre as desfeitas vermelhuscas pode fazer vender menos papel ou publicidade, ou se é apenas porque são tontos. O que se passou ontem com a estreia do mais jovem guarda-redes de sempre na Liga dos Campeões, promovida por Rui Vitória, será o exemplo perfeito disso. Será corajoso ou idiota lançar o jovem Svilar num jogo contra o colosso Manchester United, depois de apenas ter jogado um jogo a titular contra uma fraca equipa que pouco trabalho lhe deu? A resposta estaria sempre no resultado da aposta, na qualidade (ou falta dela) da exibição realizada pelo guarda-redes. Ora, depois de um frango como há muito não se via, facilmente explicado pela inexperiência e por algum deslumbramento do jovem, Rui Vitória foi crucificado? Não! O Benfica, por causa desse frango, mantém-se com zero pontos em 9 possíveis na Liga dos Campeões. O que diz disso a esmagadora maioria dos comentadores? Elogiou a coragem do treinador, elogiou o jovem que certamente nunca teriam visto jogar antes destes dois jogos, augurando-lhe mesmo um futuro radioso, ao nível do bom, velho e único Michel Preud´Homme. Para cúmulo da insanidade, José Mourinho veio dizer que só erra assim quem é brilhante, que o jovem vai ser um dos grandes, que é uma fera! Zé, és especial sim, mas o que é demais é demais, o manto sagrado assim vestido cai-te como uma samarra roçada em dorso real! Com tanta palmadinha nas costas e favores opinativos injustificados, admirem-se que a PJ e a PGR sintam curiosidade em saber das razões de tanta cegueira…
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O mergulho
Sabia que a sua natureza era mais forte do que todas as regras e grilhetas que a sociedade ou os que a rodeavam pretendiam impor-lhe. Gostava dela assim, selvagem, indiferente a convenções e tabus artificiais, mas pedia-lhe por vezes alguma contenção. Mais por a querer só para si, o seu precioso segredo, do que pelo choque cultural que a atitude de uma mulher selvagem pudesse provocar nos outros. Quando ela lhe sorriu da soleira da porta, anunciando que ia estrear a praia junto à nova casa, devolveu-lhe o sorriso e pediu-lhe apenas para usar o lenço de praia que lhe cobria as belezas inigualáveis que tinha o privilégio e o desmedido prazer de conhecer até ao tutano. Ela desfez-se naquela gargalhada de miúda marota que o deixava desarmado, replicando que não ia a lado algum sem o seu muito amado lenço. Da janela, viu-a afastar-se em saltinhos de gazela, chegar à praia obedientemente coberta pelo tão amado lenço, sentiu a alegria contagiante que o sol abrasador e o mar em forma de céu líquido lhe transmitiam, e não conseguiu conter a gargalhada perante o espectáculo único que foi a sua entrada mar adentro. Live and let live.
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O país em chamas
Temos que nos adaptar às novas condições climatéricas. Toda a Europa e a Califórnia estão a arder. As pessoas não podem estar à espera dos bombeiros e dos aviões, têm de se organizar e auto-proteger. Organizações terroristas apontadas como suspeitas dos incêndios. No meio de tantas alarvidades já ouvidas vem a cereja no topo do bolo pela Ministra, que diz que o mais fácil era demitir-se e tirar as férias que não teve este ano. Mas ainda não chega. Assobios para o ar, dedo acusatório ao tufão Ophelia, aos agricultores que fazem queimadas, ao descuido das populações. A esta hora já morreram mais de 30 pessoas em Portugal por causa dos fogos (nas últimas 24 horas!), bem mais do que no resto da Europa toda e não há ninguém que assuma responsabilidades, que perceba que o sistema de protecção civil do país não funciona, que o Estado está a falhar clamorosamente na sua principal missão, a de assegurar a segurança dos seus cidadãos. Ou a solução passa por termos que substituir todas as florestas por betão, porque não somos capazes de proteger a natureza do mal que os homens teimam em infligir-lhe?
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Ao cuidado do xor Eng.º Sócrates
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O beija-flor
A garganta estava seca, as palavras evitavam abandonar a fonte estéril. Sentia a imaginação definhar e a inspiração longínqua. Os motivos por que outrora cravava sofregamente os dedos na caneta esfumaram-se nas idas e vindas da vida, nos encontros e desencontros com que o destino teimava em confrontá-lo. Sabia que um dia usaria esses reveses e as memórias já menos dolorosas como o fermento que faria germinar as palavras, mas neste momento sentia que, mais do que motivos para escrever, faltava-lhe vida vivida, intensamente vivida, que lhe trouxesse de volta a sofreguidão de estrangular a caneta. Faltava-lhe alguém para quem escrever, que lhe bebesse as palavras como o beija-flor bebe o néctar das flores, que o forçasse a espremer cada palavra como se fosse a última, como se o suco que jorrasse nas folhas fosse o elixir mágico que lhe devolveria a vida e a paixão de escrever.
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O sinal
Escrevi o texto seguinte há dois anos. Poderia tê-lo feito hoje, pois no domingo tudo se mantinha igual, no mesmo sítio, como se o tempo tivesse parado. Os rapazes continuam a adorar o ato de depositar o papel na urna (hoje já com maior consciência da importância do mesmo), os velhos continuam velhos, de passo lento e frágil, mas decididos, os seus olhos com o brilho que, creio, acompanha sempre os olhos dos velhos, como se não existissem muito mais razões no mundo para lhes fazer brilhar a alma e iluminar o olhar. No domingo passado não choveu como há dois anos, brilhou sim um sol abrasador, talvez o mais sublime sinal de que a esperança afinal faz sentido.
“Alguns anos depois, votar na escola onde fiz o ciclo preparatório (a boa e velha “Fernando Pessoa”, aos Olivais). Ver os meus dois filhos depositarem o voto dos pais nas urnas. Cedo, que com filhos pequenos a preguiça foi encarcerada na urna. É cedo que os nossos velhos vão votar, devagar, passo frágil, mas decidido. Olhos sem brilho, cabisbaixos, como se a esperança definhasse na exacta medida dos jovens que rareiam nas mesas de voto. Os meus filhos radiantes pela nova experiência. A esperança a despontar por entre os pingos da chuva.”