Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
O assobio
Berlim, 1957, por René Burri
Pouco mais que sombras pouco menos que gente
seres que levitam na escassez de peso e de existência
batimentos inertes em dúvidas
submersas na certeza da sua trémula opacidade.
O assobio que se escuta nas escadas cinzento metálico
não é o de uma alegria quente
expectável
de quem está vivo
de quem tem a possibilidade de amar
é apenas o vento frio que confronta as brechas envelhecidas
do ferro e das gentes
na esperança vã de que alguém recorde como é assobiar.
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O papagaio de asas quebradas
Fotografia de René Burri
Nada há mais triste do que a infância que se esfuma
o adulto que se molda em oposição ao vento
contra a corrente do rio que corre livre e abraçado a sonhos crus.
O papagaio voa agora solitário
não pelo impulso generoso da criança
mas soprado pela indiferença do abandono,
longe da ingenuidade perdida
saudoso dos dedos quentes e felizes que jamais voltará a sentir.
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O trigo, o joio e um bom punhado de grãos de café
Há dias assim. O cansaço acumula-se, a energia soçobra perante a montanha de tarefas inacabadas, envoltas na desconfiança de que andamos a fazer muitas coisinhas mas nada de realmente importante. Não conseguimos separar o trigo do joio porque não nos damos, não nos dão, ou não fica bem tirar algum tempo para nos focarmos nas prioridades, no que vai ter impacto, no que tem potencial para mudar algo para melhor. Saia um café duplo!
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A cabana é fácil
Havana, 1994, Peter Ginter eterniza um casal que dança felicidade no hall de um hotel decrépito. O amor e uma cabana, meus senhores, o amor e uma cabana.
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Numa pequena e delicada caixa
Tudo o que se apoderava dela naqueles momentos era de uma força incomensurável e, contudo, cabia numa pequena e delicada caixa. Os momentos de êxtase, o toque mágico, como se os dedos fossem uma continuação dos seus nervos e assim a fizessem sentir, vibrar, enlouquecer muito para além do seu corpo, do mundo que julgava conhecer. Num outro universo residiam as sensações inigualáveis, o amor que nunca sonhara existir, a sintonia de dois seres tão diferentes, mas que tocavam nas mesmas cordas um do outro, que produziam os mesmos acordes, como que um canto de sereia de outro mundo. Na pequena e delicada caixa que escondia no seu peito viviam agora as memórias que a faziam viver e sofrer. Não era fácil viver assim, mas preferia uma centelha dessas memórias a todas as vidas que a vida tinha ainda para lhe dar.
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Rangel Trindade, o homem que sonhava viver duas vezes
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Lake, Veronika Lake
"Hollywood gives a young girl the aura of one giant, self-contained orgy farm, its inhabitants dedicated to crawling into every pair of pants they can find"
Em 1971 a diva Veronika Lake descrevia assim o clima que pairava sobre Hollywood. Depreendemos que por detrás da cortina destas palavras o assédio sexual fosse parte integrante dessa quinta orgiástica que Veronica descreve. Seria assim com o assédio sexual no mundo das artes, seria assim certamente com o fenómeno do bullying nas escolas. Há 30 anos atrás, era eu um jovem pré-adolescente, já o bullying existia nas escolas, nos grupos de miúdos que então brincavam à solta nas ruas dos Olivais, em todo o lado. Arrisco-me a dizer que esse triste mas real fenómeno era até mais intenso e gravoso do que nos dias de hoje, onde a propagação de imagens, histórias, notícias e afins tornam tudo bem mais próximo e grave. Quanto ao assédio sexual no cinema, na moda e em muitas outras profissões, não duvido que existisse igualmente, provavelmente em maior escala do que nos dias de hoje, em que os mecanismos de controlo e censura social estão bem mais aguçados, como se percebe dos recentes acontecimentos de denúncia e condenação social e penal dos prevaricadores. O que se passa, novamente, é que uma denúncia tem hoje um alcance global, através dos media e sobretudo das sufocantes e bigbrotherianas redes sociais. Não quero com isto menorizar a gravidade do bullying ou do assédio sexual (um só caso seria já demasiado gravoso para se calar), mas sim dizer que já antes existiam, embora muitas vezes ocultos sob o manto de um mundo menos global e aberto. Estes comportamentos desviantes devem ser combatidos, penalizados e primeiro que tudo prevenidos, aproveitando todos os mecanismos modernos e civilizacionais que o passar dos anos nos deram. Aprendamos com os erros do passado, utilizemos as ferramentas do presente, mas não façamos disto uma chinfrineira histriónica, como se o mundo de hoje fosse muito mais perigoso, obrigando-nos a trancar os filhos em redomas de cristal onde nem do sexo dos anjos se fala. Vejam lá isso.
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Limpa que limpa e torna a limpar...
As más línguas são o cancro deste país, é o que vos digo! Então andam para aí a dizer que o braço direito do honestíssimo Presidente do Benfica andou para aí a subornar gente para ter acesso a informações em segredo de justiça sobre uns e-mails que o seu Presidente jura que são falsos, que não têm mal nenhum, que são uma cabala e o diabo a sete? Então mas isto faz algum sentido, queimar o nome e a instituição a subornar funcionários judiciais quando os e-mails são falsos, ou não têm nada de mal, ou foram ilegalmente obtidos? Epá, qualquer dia andam para aí a pulular as hashtags #tetradatreta e ainda substituem o #carregabenfica pelo #carregueirabenfica. Vejam lá isso, minha gente!
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O eterno retorno
Amava despertar nos suaves aromas do café pela manhã, simples e a ferver. Depois disso, a perfeição coincidia com o som surdo das palavras a ecoar dentro de si. Se depois desse momento só seu ele a possuísse como só eles sabiam, o dia, o mês, a vida podia fechar para balanço. Não havia nada a desejar para lá disso. Só o eterno retorno.
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Créatures de rêve, Paris, 1952, por Robert Doisneau
Tiraram-lhe tudo, esvaziaram-lhe o sentido dos dias, só não lhe mataram as memórias e os sonhos que ainda se permitia. Estranhamente, os sonhos confundiam-se e perdiam-se nos suaves e quentes braços das nebulosas da memória. Os objetos oníricos que não lhe abandonavam o corpo, os sentidos e o espírito não partiam rumo ao futuro, tal a força com que se ancoravam no seu passado. Sonhar era regressar ao passado. Viver seria abdicar do passado?