Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Mil máscaras
Quatro paredes que encerram o medo nos recantos do nosso assético casulo. A vida mascarada de vida, o medo convertido no novo normal. Pelo canto do olhar desconfiado as saudades do sorriso aberto de há 3 meses, há 3 meses foda-se, há 3 meses a rapariga da pastelaria sorria enquanto corava e corava enquanto sorria, desfazia-se no calor dos meus galanteios como o creme do mil folhas se evaporava na minha boca a ferver do sorriso dela. Não, não há na minha vida nenhuma loira de generosos e fartos seios da pastelaria do bairro, há apenas a raiva por não ver sorrisos abertos e tímidos por detrás das cirúrgicas máscaras que nos converteram a todos em doentes ambulantes, em hipocondríacos cinzentos e macilentos, zombies sonâmbulos cuja ambição maior é fugir ao bicho, ao Covid, ao coveiro, à cova onde todos acabaremos, com ou sem máscara. O caminho que faremos até deitarmos as costelas na terra fria somos nós que o escolhemos. Preferem fazê-lo a sorrir e a beijar, ou a sentir o bafo do medo encostado a lábios secos e carentes do calor da boca do vosso amor, do engate do momento, da moça da pastelaria de mamas de mil sonhos e folhas? Vejam lá isso, porra.
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Strange days
Arte por Flavio Greco Paglia
O que ontem tomámos como garantido e que assim vinha sendo há anos pulverizou-se em escassas e distópicas semanas. Um vírus microscópico, uma ameaça invisível que torna visível a fragilidade humana, a infantilidade das certezas, a nossa incapacidade de adaptação. Os líderes mundiais que julgámos medianamente imbecis mas, ainda assim, foda-se, ainda assim, acreditávamos terem uma pinga de bom senso ou, pelo menos, a inteligência de se rodearem de conselheiros sábios, assumiram toda a imbecilidade megalómana que julgáramos impossível de atingir. Amigos normais que aprendemos a admirar sucumbem ao pânico e transformam-se, por artes de feitiçaria, em débeis imitações de adolescentes borbulhentos e geneticamente imaturos. Já ninguém se lembra porque tem a dispensa repleta de rolos de papel higiénico, há quem pague pequenas e patéticas fortunas por máscaras fashion. Uma amiga que admirava pela calma e sensatez dispara nas redes sociais, ganha garras e garra e ataca os confinados desesperados “Gajos casados que andam ao engate, só prova o quão cobardes são. Preferem a segurança aparente de uma relação falhada e depois tentam comer por fora. Não quero julgar ninguém, cada um faz o que quer, mas pelo menos aguentem quando levam negas, ok?”. Assomos de louca coragem (se é bom ou mau, não serei eu a julgar) confundidos por entre reações de pânico, como a de um conhecido bem posicionado nas hierarquias do poder que enviou uma mensagem de whatsapp, para as suas centenas de contactos, alertando, um dia antes da declaração do estado de emergência, para que todos fossem a correr aos supermercados e farmácias, porque ia tudo esgotar, íamos ficar meses sem poder sair, salvem-se e salvem os vossos, gritava ele, desesperado, marimbando-se para todos os outros, pobres mortais, que não tiveram acesso a essa informação privilegiada.
“O mundo não será destruído por aqueles que fazem o mal, mas por aqueles que assistem sem nada fazer”, publica uma amiga, atribuindo a sábia frase ao grande Einstein, só não sei se ela vai fazer algo com essa grandiloquente mensagem ou se vai apenas sorrir, com o ego afagado por si própria e pela sua incrível capacidade de espalhar sabedoria. Olho para os meus filhos, saudosos dos amigos e da escola, mas a saber disfrutar desta nova proximidade familiar, ainda que forçada, e pergunto-me quem serão os génios que querem devolver as crianças ao seu mundo, restituindo-lhes algum normal, com regras que apenas lhes ensinarão o caminho da desumanização. Não sou o Albert, mas sou rapaz para dizer que o futuro somos nós que o construímos e que o medo não é bom conselheiro para os dias que hão-de vir. Vejam lá isso.