Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Pepe, a ténue fronteira e a mão invísivel
Quem já jogou futebol com alguma regularidade e com um grau de competitividade aceitável (mesmo nas jogatanas de bairro), certamente passou por momentos de descontrolo emocional ou assistiu a alguns dos colegas de pelada a "passarem-se dos carretos". O cansaço transtorna-nos, o sangue aflui com mais dificuldade ao cérebro, enfim, o raciocínio turva-se e as reacções traiem aquilo que somos fora das 4 linhas (como chamam os mestres da pena desportiva ao palco da festa).
Já passei por algumas situações de descontrolo, quer porque ultrapassei os limites físicos, quer porque a frustração da derrota iminente aliada à incapacidade de tornear as dificuldades não foram por mim aceites, naquele exacto dia, com a obrigatória e devida civilidade (vulgo fair-play, no mundo da bola).
Isto para amadores. Agora ponham sobre os ombros desta malta que corre pelos asfaltos e pelados deste país o peso de um ordenado de milhões, milhões de adeptos, expectativas infinitas, a representação do emblema de um dos mais importantes clubes do mundo, um regime de vida marcial, e imaginem o grau de responsabilidade e stress emocional com que se deve jogar à bola sob os holofotes da escaldante fama.
Pepe passou para o outro lado, o da irracionalidade, aquele hemisfério que nos querem fazer crer que não pertence ao domínio do ser humano. Sentiu num segundo que tinha entregue o campeonato, que tinha defraudado milhões, que tinha falhado e desmerecido os milhões que lhe pagam. Deve ser punido mas entendido. Deve ser punido porque a liderança se faz do exemplo, e um clube e um órgão disciplinar que não puna estes casos terá obrigatoriamente que branquear todos os outros. Líder não foi o seu treinador, Juande Ramos, quando desculpabilizou infantil e vergonhosamente o comportamento de Pepe. Parece que, segundo ele, Pepe andava a caçar moscas ou a renovar o ar com o agitar dos pitons e dos punhos.
Mas Pepe deve ser entendido, compreendido, apoiado. Porque aceitou o erro crasso que cometeu, porque chorou lágrimas de verdade, porque não se reconheceu no que fez, porque é humano. Castiguem-no os tais 6 jogos e monitorizem os futuros comportamentos. Mas não o crucifiquem e não o percam para o futebol. Isso nem Deus o fez. Porque ouso dizer isso? Como sei que o castigo divino não flagelou mais ainda o pobre Pepe? Porque no minuto seguinte uma mão invísivel fez Casquero falhar o penalty, porque no subsequente minuto a mesma divina mão fez Higuain abraçar Pepe através de uma bola que chocalhou no fundo da rede. Como quem diz que o mundo não acaba aqui, que há sempre o minuto que se segue.
Não resisto a colocar aqui um trecho retirado da bíblia (a boa e velha "A bola") sobre o caso, no qual se questiona um especialista em comportamento humano, Carlos Amaral Dias (CAD), acerca da interpretação do triste episódio. E ainda dizem que a bíblia é só para palermas. Palermas.
Como pode alguém tão gentil, correcto e educado transformar-se de forma a cometer actos violentos? O psicanalista CAD explica que Pepe «perdeu o controlo dos sentimentos e emoções». Por ser «inesperado em pessoas com personalidade bem controlada» causa maior admiração. Mas CAD lembra Freud para assinalar que «é muito pouco o que nos separa dos homens das cavernas. Com a civilização há um controlo aparente das emoções. Mas em certos momentos há quebras, como aconteceu com Pepe. Muitas vezes, as pessoas que têm mais controladas emoções e afectos, quando os perdem, perdem mesmo. E as consequências são elevadas a um ponto mais alto», argumenta.
O clínico diz que o «arrependimento é tanto maior quanto a consciência do acto». Quanto ao futuro de Pepe, não duvida que será diferente. «Haverá consequências negativas e algum condicionamento. Pepe mostrou um lado desconhecido e viu uma imagem diferente dele próprio. Terá de discutir o que aconteceu e tentar com que as emoções quotidianas sejam menos rígidas».
FORÇA PEPE!