Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
A violência e o escárnio (pérola 2) - Da ambição e da doce ignorância
"A sua bondade e a brandura do seu carácter tinham-no levado sempre a preferir a companhia das crianças. No fundo, os adultos metiam-lhe medo; via invariavelmente em cada um deles um assassino em potência. Urfi precisava de amar sem segundas intenções, sem rodeios, sem rabulices, e sobretudo de poder perdoar. Mas como perdoar a um adulto? Separavam-no dos seus contemporâneos demasiados egoísmos, tolices, brutalidades, ambições desenganadas e azedas. A ambição! Todos andavam consumidos pela ambição, esporeados por ela. Queriam subir! Mas subirem a quê? Quando por fim lá chegavam - às alturas da glória ou do dinheiro -, aquilo fazia deles umas pesadas bestas sanguinárias, uns repugnantes monstros de arrogância, incapazes de sentir o menor fragmento dum sentimento humano.
O que Urfi admirava nas crianças era sobretudo uma total ausência de ambição. Viviam contentes com o seu destino no dia-a-dia, ambicionando apenas o simples júbilo de estarem vivas. Mas por quanto mais tempo seria assim? A infância e a maravilhosa futilidade da juventude sumiam-se depressa. Essa inegável verdade enchia Urfi de amargura. Mais tarde, aquelas crianças iriam tornar-se homens e mulheres. Seguiriam a alcateia das feras, abandonando o seu intransigente amor feito de pureza para se perderem na multidão anónima de assassinos".
De que falamos quando abordamos a preocupação que é a espinhosa missão de educar uma criança? Sobretudo, dedicamo-nos a apagar os traços da infância, acreditamos que fazer dela um adulto, esquecido das suas infantis vacuidades, é o caminho para criarmos um ser bem sucedido neste complexo mundo que é o dos adultos. Em grossos traços, o desiderato de qualquer pai é o de dotar aquele pequeno e ingénuo ser de armas que o defendam do mundo e dos demais, revesti-lo de uma couraça que o torne imbatível face à inquestionável malícia de o mundo que o rodeia.
Em suma, o objectivo final é extrair do ser a criança, diluir-lhe as memórias de dócil ingenuidade, criar mais um adulto soldado nesta guerra que é viver.
Albert Cossery aponta-nos o caminho. Ainda vamos a tempo. De inverter o caminho. De nos olharmos ao espelho e de assumirmos as bestas que somos. De regressar à infância.