Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Strange days
Arte por Flavio Greco Paglia
O que ontem tomámos como garantido e que assim vinha sendo há anos pulverizou-se em escassas e distópicas semanas. Um vírus microscópico, uma ameaça invisível que torna visível a fragilidade humana, a infantilidade das certezas, a nossa incapacidade de adaptação. Os líderes mundiais que julgámos medianamente imbecis mas, ainda assim, foda-se, ainda assim, acreditávamos terem uma pinga de bom senso ou, pelo menos, a inteligência de se rodearem de conselheiros sábios, assumiram toda a imbecilidade megalómana que julgáramos impossível de atingir. Amigos normais que aprendemos a admirar sucumbem ao pânico e transformam-se, por artes de feitiçaria, em débeis imitações de adolescentes borbulhentos e geneticamente imaturos. Já ninguém se lembra porque tem a dispensa repleta de rolos de papel higiénico, há quem pague pequenas e patéticas fortunas por máscaras fashion. Uma amiga que admirava pela calma e sensatez dispara nas redes sociais, ganha garras e garra e ataca os confinados desesperados “Gajos casados que andam ao engate, só prova o quão cobardes são. Preferem a segurança aparente de uma relação falhada e depois tentam comer por fora. Não quero julgar ninguém, cada um faz o que quer, mas pelo menos aguentem quando levam negas, ok?”. Assomos de louca coragem (se é bom ou mau, não serei eu a julgar) confundidos por entre reações de pânico, como a de um conhecido bem posicionado nas hierarquias do poder que enviou uma mensagem de whatsapp, para as suas centenas de contactos, alertando, um dia antes da declaração do estado de emergência, para que todos fossem a correr aos supermercados e farmácias, porque ia tudo esgotar, íamos ficar meses sem poder sair, salvem-se e salvem os vossos, gritava ele, desesperado, marimbando-se para todos os outros, pobres mortais, que não tiveram acesso a essa informação privilegiada.
“O mundo não será destruído por aqueles que fazem o mal, mas por aqueles que assistem sem nada fazer”, publica uma amiga, atribuindo a sábia frase ao grande Einstein, só não sei se ela vai fazer algo com essa grandiloquente mensagem ou se vai apenas sorrir, com o ego afagado por si própria e pela sua incrível capacidade de espalhar sabedoria. Olho para os meus filhos, saudosos dos amigos e da escola, mas a saber disfrutar desta nova proximidade familiar, ainda que forçada, e pergunto-me quem serão os génios que querem devolver as crianças ao seu mundo, restituindo-lhes algum normal, com regras que apenas lhes ensinarão o caminho da desumanização. Não sou o Albert, mas sou rapaz para dizer que o futuro somos nós que o construímos e que o medo não é bom conselheiro para os dias que hão-de vir. Vejam lá isso.
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A fábula moderna da formiga e do elefante
O que mais faltava à humanidade, o que todos ansiamos escutar, ler, aprender um pouco mais, polemizar, atafulhar os nossos cérebros com mais um punhado de acendalhas para a fogueira do pânico colectivo, é, indubitavelmente, mais uma ladainha sobre a pandemia, o horror, o fim dos tempos ou o começo de um novo tempo. Mas não, recuso-me a enveredar por esse sentido sem retorno, a entrar nesse círculo vicioso habitado pelos coléricos donos da razão. Vou antes discorrer um pouco sobre a fábula da formiga e do elefante. A formiga somos nós, patéticos grãos de areia neste deserto de incertezas. Os elefantes, os pesos pesados que hipotecam os velhos tempos e nos conduzem, cegos e dilacerados pelo medo, a caminho de um novo futuro, o futuro perfeito, pois desconhecido e opaco. Se há arte em que os nossos líderes se tornaram peritos nesta modernidade sensaborona e desajeitada foi o de nos fazerem ignorar o elefante no meio da sala, da aldeiazinha, da vila, da cidade, da pátria, do mundo inteiro. Biliões de letras depois, milhões de palavras gastas, milhares de artigos científicos discorridos, opiniões sem fim à vista passadas e os elefantes crescem e esmagam-nos, cheios de si, alimentados pela nossa permissiva passividade.
De que elefantes falo? Meus amigos, a título de exemplo, permitam-me soletrar três nomes próprios, três elefantes gordurosos que as patéticas formigas colocaram no leme de três das maiores nações mundiais: Trump, Bolsonaro, Boris Johnson. Trump, Bolsonaro, Boris Johnson. Trampa, bosta, burrice pura. Como enfrentaram estes “líderes” a pandemia? Desvalorizando, ridicularizando, sublinhando a primazia dos cifrões sobre o valor central da humanidade, esse mesmo, a vida humana. Hoje, claro, recuam, mesmo que timidamente, perante a alarvidade inicial das suas convicções bárbaras e ignorantes, para nos cantarem canções de embalar sobre a inevitabilidade das mortes, o horror do vírus, como se não fossem os responsáveis por futuras e evitáveis centenas de milhar de mortes que patrocinaram e que não se dignaram a proteger.
Mas há mais elefantes. As causas das coisas. Tudo tem uma origem e teimamos em olhar para outro lado. Os artigos científicos sobre a perturbação de ecossistemas, sobre a exploração, o tráfico ilegal e o comércio legal de animais selvagens, esses parecem esquecidos e pouco relevantes. As provas inequívocas de que este e os anteriores Coronavírus têm origem nesses animais, no desequilíbrio e na promiscuidade com que o homem trata a natureza, trazendo para a cadeia humana vírus inconsequentes para animais selvagens, mas mortíferos para o homem, nada disso é colocado no topo das discussões, das prioridades preventivas para travar estas pandemias que assolam o mundo e ameaçam a vida humana. A origem do mal é um elefante gigante, invisível aos olhos de quem tem que nos defender e decidir.
Temos também o elefante da receita que pode ser a nossa morte. Começamos todos a perceber, formigas e elefantes, que fecharmo-nos nos casulos para que o vírus não entre em nós é abrir as portas a que a pobreza e a miséria possam entrar no futuro próximo dos anos que se seguem. Como vamos equilibrar, rapidamente, antes que o futuro se desmorone, a necessidade de nos protegermos com a urgência em continuarmos a viver e a produzir? O elefante da falta de respostas, da ausência de coragem/imaginação para questionar as receitas atuais, esmaga-nos lentamente.
Cá pelo burgo os elefantes são mais pequenos mas igualmente ignorados. A falta de meios, o desinvestimento no serviço nacional de saúde, são ocultados por detrás de elefantes habilmente alimentados. A falta de testes passou a ser apresentada como a necessidade de apenas testar aqueles que têm sintomas, isto apesar de a OMS bradar aos sete ventos que a prioridade é testar, testar, testar. Os casos de sucesso em que a pandemia foi travada ou retardada com mais sucesso, suportados pelo uso generalizado de máscaras pela população, não valem de nada quando o elefante da falta de meios/máscaras cá pelo nosso cantinho verdejante e solarengo são transformados em alegorias elefantinas de “a máscara até pode ser contraproducente se mal usada” (como se fôssemos crianças idiotas) ou “a máscara só serve para quem tem o vírus não o passar para os outros”.
Os elefantes caminham vagarosa e pesadamente sobre o trilho das formigas. Aqueles são poucos mas poderosos, diz-se, estas são imensas mas impotentes, será? Ou apenas cobardes? Ou ignorantes? Ou confortável e cegamente confiantes naqueles perigosos paquidermes? Porque não tentamos mudar o rumo do nosso futuro, é a questão que realmente me atormenta. Ontem de noite sublinhei este trecho de “Os cus de Judas”, de Lobo Antunes. Se calhar é isto, tristemente é isto:
“O que os outros exigem de nós, entende, é que os não ponhamos em causa, não sacudamos as suas vidas miniaturais calafetadas contra o desespero e a esperança, não quebremos os seus aquários de peixes surdos a flutuarem na água limosa do dia a dia, aclarada de viés pela lâmpada sonolenta do que chamamos virtude e que consiste apenas, se observada de perto, na ausência morna de ambições”.
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O primeiro beijo
Fotografia por Stephen Shames, "Bike Jump", da série "Outside the Dream Child Poverty in America, 1985"
Terá havido um momento no tempo, no desenvolvimento da sociedade e das relações humanas, em que se deu o clique. Alguém, uma qualquer besta quadrada e insensível, decidiu espalhar a boa nova de que a ordem social aconselhava seriedade e tino, padrões lineares e facilmente repetíveis que matassem à nascença as mais ínfimas possibilidades de maluqueira, como que uma nuvem carregadinha de abúlicos enfados imbuída da nobre missão de silenciar gargalhadas, de sufocar desbragadas gargantas.
Há quem se admire com a existência de sorrisos e esgares de felicidade por entre bairros de tijolos envelhecidos, nas faces de crianças sujas e timidamente alimentadas. Há quem estranhe o mistério de os ricos e afamados demasiadas vezes meterem uma bala na cornatura, como se a joie de vivre fosse proporcional ao volume do livro de cheques. Como se chutar uma remendada bola no meio de um lamaçal, rodeados de amigos, não inspirasse mais felicidade do que uma ceia inimitável num qualquer chateau desses paraísos exclusivos tão invejados. Como se o primeiro beijo e a queca de estreia, mal amanhada mas inesquecível, não dessem uma abada à última visita à casa de mademoiselles de pele lustrosa e seios aperfeiçoados, daquelas que levam os olhos da cara por meia hora de luxúria artificial. A puta da vida devia ser tão simples. Vejam lá isso.
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Jones, Grace Jones
Grace Jones, no Estúdio 54, fotografada por Adrian Boot (1981)
“I was born into a very religious family where everything was about setting the right example for the community and having to obey orders blindly. I felt that everyone was growing up in the world, except me. This is probably one of the reasons why I had such a rebellious attitude towards any form of authority.”
“Women and men grow up with both sexes. Our mothers and fathers mean a lot to us, so it's just a question of finding a balance between their influences. I've found mine. And it tends to be more on the male side. I mean male side the way we understand it in the West.”
“Hiding, secrets, and not being able to be yourself is one of the worst things ever for a person. It gives you low self-esteem. You never get to reach that peak in your life. You should always be able to be yourself and be proud of yourself.”
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Formiguinha, formiguinha...é isto que buscas para a tua vida?
O Bolas não morreu, o Bolas nunca morrerá, pois viverá sempre nos nossos corações. Adoro clichés bacocos, não tanto quando adoro que me digam que têm saudades do Bolas. Sim, a puta da falta de tempo, sim, o trabalho perdido por entre urgências várias, sufocado por entre a voracidade das necessidades que se multiplicam como parasitas incómodos nos cabelos do meu desgraçado filho, contaminado por crianças a quem os pais não tiveram tempo de aplicar o shampoo anti-piolhos, porque a voracidade dos seus dias não lhes permite aquela meia hora de pausa em que o shampoo faz o seu mortífero trabalho. Corremos incessantemente, dedilhamos e-mails nervosos e repletos de gralhas, a perfeição já foi, hoje é a velocidade que conta, a sede de dados e inputs, reportes e pontos de situação, todo esse emaranhado de dados desconexos que nunca alcançarão o estatuto de informação hão-de satisfazer alguém, uma eminência impecavelmente engravatada na sua torre de marfim onde o sexo dos anjos não se discute, alguém que pensará que o seu dia foi imensamente produtivo, mesmo que nada de digno seja produzido pelas suas formiguinhas hiperativas. A imagem que encima este post de saudades dos tempos em que o Bolas de quando em vez tinha tempo para respirar é da cidade de Norilsk, na Rússia, fundada em 1935 como um gulag, situada a cerca de 240 km a norte do círculo polar ártico. O tempo parado, a doce indolência das crianças. Pergunto-me se as crianças terão de emigrar para Norilsk para terem tempo de ser crianças. É isto que queremos para nós e para os nossos filhos?
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O cemitério de folhas
Olhava as letras como quem lê, mas sofria de uma profunda incapacidade de beber o prazer da leitura, da arte, dessa imitação da vida, da própria vida. Recordava outras leituras, vivas, partilhadas, orgias de palavras que inevitavelmente se diluíam na fogueira dos corpos. Entendia as memórias como a parte morta, doce ou amarga, da vida que os dias e os anos lhe tinham devorado. Sopravam-lhe que era possível viver de memórias, seguir em frente e sorrir com o terno abraço de quem já não o tocava, que era suficiente sobreviver gloriosamente com a lembrança daquele beijo. Ele abanava furiosamente a cabeça, recusava-se a viver na imobilidade, na triste dança das folhas mortas. As memórias já só lhe faziam sentido como um atalho para o caminho a percorrer. Rejeitava deixá-las morrer, melhor, insistia em impedi-las de viver. Enfrentava as memórias como D. Quixote desafiava os moinhos, louca e convictamente, tudo fazendo para as reviver, para que ganhassem nova vida, o seu desígnio era ressuscitá-las do cemitério de folhas.
Ela olhou para ele e sorriu. Sempre o mesmo adolescente borbulhento, sempre o mesmo tolo. E, ainda assim, por mais que o negasse, não conseguia deixar de o amar, mesmo que os seus conceitos de amor fossem, supostamente, distintos.
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Amor à primeira vista
Há aqueles dias, semanas, meses, em que um tipo deixa de ter algo interessante para dizer. Está-se tão embrenhado na vida que só se executa, anda para a frente, fecha dossiers, desenrola projectos, acorda putos, deita putos, monta móvel do Ikea, enche a bagageira até ao limite, despeja as malas para o velho casulo, lava a loiça, seca a loiça, zapping, mais zapping, a merda do Sporting que caminha em círculos infinitos de incompetência e imaturidade, a política nacional nas mãos do mestre da táctica, a política lá fora nas mãos de loucos furiosos ou de ursinhos fofinhos, o diabo a sete. Um gajo vai a ver e o que interessa é mesmo isto. A primeira vez que os lábios se encontram...
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A Deus
Detalhe de “Extrema Unção”, de Nicolas Poussin
Adeus.
Esta despedida que hoje proferimos demasiadas vezes, tantas vezes com excessiva leveza, nasceu da despedida terminal, da expressão outrora usada pelos padres para recomendar as almas ao cuidado de Deus. “Eu te recomendo a Deus”, outorgavam os curas no leito da morte. Hoje, quando tudo é abreviado, em modo rápido e que não canse a língua, fica o singelo e esquivo adeus, sem sequer ligarmos à importância do que dizemos, ao divino que tudo envolve e justifica. Do outro lado do canal da Mancha também os ingleses esquartejaram o conforto da expressão “God be with you” para um pervertido goodbye, a despedida de quem interrompe uma paint para ir bafejar um cigarro à porta do pub da esquina.
Não obstante, a aparente leveza que este despedaçado adeus assume, contrasta com os nossos receios em dizê-lo, com o confortável peso que carregamos em nós por termos alguém que nos dá vida, alguém que nem sonhamos vir a tocar com o verdadeiro significado desse beijo da morte que é dizer-lhe adeus. É bem provável que este abreviar das palavras derive, mesmo que inconscientemente, da patética tentativa para que essa despedida não assuma as proporções de outrora, que o simples adeus não entregue a pessoa amada nas mãos de Deus. A Deus o que é de Deus, ao homem o singelo adeus.
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Gente feita de gente
Elizabeth Taylor a descansar, durante as filmagens de "Suddenly, Last Summer" (Espanha, 1959)
Precisa-se de gente que abra, gentilmente, alas para quem vem da esquerda ou da direita,
gente que não corra
que não salive quando vê o amarelo beijar o calor assassino do vermelho
homens e mulheres que respirem a serenidade de nuvens imperfeitas
de suspiros de algodão em forma de bolas de sabão
nuvens que não sabem se chovem ou se serenamente flutuam
indecisas entre imitar redondas baleias ou tesouros do tamanho do sonho das crianças.
Procura-se gente que não pergunte por razões
almas despidas de porquês
senhoras que não pintem os lábios ou tisnem os olhos,
mulheres com pestanas que se deixem levar p´lo vento sem toques nem retoques.
Anseia-se por homens com simpáticas e sorridentes barrigas
machos sem machezas nem mulherezas
apenas homens que riem alto quando ninguém dorme
e que ressonam quando a noite cai.
Buscam-se crianças de joelhos esfolados
com cheiro de riso e de relva molhada
tristes e felizes petizes de lágrimas embrulhadas em gargalhadas tolas
redondos de tanto chutar bolas
esqueléticos de tanto correr,
como se o mundo e a felicidade de o descobrir fossem uma estrada sem fim.
Precisa-se de gente feita de gente.
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Carnaval...
...é quando a máscara cai e o resto do ano é apenas entrudo chocalheiro...
p.s. - roubado a um amigo sem máscaras