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Crónicas da pandemia - o medo

Segunda-feira, 25.01.21

medo.jpg

A parte do mundo que me é concedido ver da janela do quarto do rapaz mais velho, agora convertido, no período diurno, em escritório de teletrabalho, revela um curto trecho de estrada, entrecortada por árvores e ladeada pela velha e gasta calçada portuguesa. Na estrada o raro ruído dos carros entristece ainda mais o cinzento do céu. Na calçada são poucas ou nenhumas as almas penadas, quase sempre limitadas aos pesarosos e mascarados passeadores caninos. Há meses que este cantinho, este outrora viçoso blog, tem andado assim, ensimesmado, mal alimentado, macambúzio e desinspirado, refletindo o estado geral da nação que esta janela dos Olivais descerra, imitando um mundo que lá fora se lamenta, estupefacto e impotente no combate ao vírus invisível.

Escuto alguns - hoje menos do que ontem - que vislumbram nestes tempos novos e estranhos uma porta aberta para renovadas visões da humanidade, para uma crescente fraternidade, para quotidianos mais calmos e reflectidos, para gentes mais próximas do seu eu e da sua essência, mais preocupadas com as necessidades espirituais do que as materiais. Balelas, diz o meu vizinho do lado, próximo de um esgotamento após meses de teletrabalho ao lado da mulher, estado esse recentemente agravado com o regresso das três crianças ao quotidiano diário.

O mundo pede-nos algo que não estamos preparados para dar. Solidariedade, maleabilidade, pensar fora da caixa, respeito pela natureza. Aqui e ali vamos vendo algumas manifestações dessas respostas, mas tão deslaçadas e espaçadas que não permitem unirmo-nos num combate efetivo à praga virológica que nos atingiu como um tsunami invisível. Na calçada, arrasta-se uma velhota ao telemóvel, máscara descaída, semblante calmo, como que desafiando o que sabe há muito, que é certo e que não teme: a morte, a morte que paira nos pensamentos dos novos fazendo deles velhos assustados. Precisamos de chegar a velhos para deixar de ter medo, está mais do que visto. Precisamos da calma dos velhos, das suas certezas quanto às incertezas da vida (qual será o dia, a hora, o momento da despedida?), precisamos de não ter medo. O medo, muito para lá de nos fechar nestas quatro paredes de tijolo, fecha-nos no casulo de nós mesmos, na loucura que é vivermos sós nas nossas quatro paredes. Vejam lá isso.

 

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publicado por bolaseletras às 17:12


3 comentários

De Teresa a 26.01.2021 às 22:12

O medo é demais... como é o desalento. Que não deixa também de ser um medo. Da solidão, da vulnerabilidade a esta coisa má, aterradora, inesperada (?).

Quando algum colega fala sobre os dias passados - aqueles em que ambicionávamos sair do marasmo da rutina casaescola/trabalhocasa - termino sempre essa viagem à saudade (e liberdade) com um "éramos felizes e não sabíamos"

Talvez não seja preciso chegar a velho para sentir essa falta de medo. Mas sinto que estamos a envelhecer a um ritmo acelerado, pendentes de números que a cada dia parece que saem mais tarde para não estragar o almoço com o seu número cada vez mais desgarrado... ao fim de quase um ano em casa *** ás vezes passo pelos espelhos de casa - como quem passa por montras - e preciso de parar porque acho que deixei de me (re)conhecer.

Não está fácil. Nem está para breve - temo - o "levantamento" do medo. O maior deles o de nos perdermos, irreversivelmente, nessa pessoa de leggings/fato de treino/roupa de andar por casa...

Já dizia Stendhal: "O medo nunca está no perigo, mas em nós.".

Não está - não tendo sido nem vai ser - fácil deixar de ter medo.

Sinais de luz e gente são muito apreciados!!!!! Obrigada por teres acendido - por instantes - esta

Abraço forte (virtual )

Teresa



*** hoje ao conversar com um colega sobre tudo ISTO - engraçado como se conversa mais agora do que antes onde, na pressa, era en passant "tudobemobrigadaaindabemficabemtambém" "hojeestádechuva" e outra superficialidades - eu dizia como me sentia roubada por não me despedir verdadeiramente do escritório e dos colegas. Resolvi tirar um dia de férias e fazer um fim de semana prolongado e durante o fim de semana a Chefe ligou a dizer que não voltaria, e a nossa área iria entrar em plano de contingência já. Não voltei e sinto-me roubada de um ritual (também) necessário para aguentar tudo isto. Os funerais estão na mesma linha. Se deixo a mente enveredar pelas teorias de conspiração quer-me parecer que há aqui um plano concertado para uma (ainda) maior desumanização do humano... e o que melhor do que "secar" sentimentos, destruir rituais e fazê-los lutar em solidão contra um inimigo brutal... mas invisível?!

De Anónimo a 03.03.2021 às 15:37

Olá Teresa,

Só agora aqui voltei. Rituais que se perdem...dizes tudo com o éramos felizes e não sabíamos. Vamos voltar a ser. Acredito que sim, acredita que sim. Abraço forte

António

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