Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Quarto 2170
Ninguém imaginava o bem que lhe sabia aquela bebida servida a si próprio a partir do mini-bar do hotel. Já não conseguia ver mais gente, a trovoada de vozes que aguentara todo o dia em infindáveis reuniões preparatórias, a quase desastrosa reunião final, a conclusão de um processo de seis meses que terminara numa pífia decisão salomónica, que nada resolveria mas que deixaria satisfeitos os de sempre, os que temem mudar e apenas procuram perpetuar o status quo. E a vaca da representante alemã que se recusara a negociar um milímetro que fosse do memorando final, que era tão flexível como uma barra de aço, que tinha tanto de sensual e irresistível como de teimosa e gélida rameira. Se a educação lhe exigisse mais um esmerado sorriso amarelo tinha a certeza que se esvairia num vómito infinito. Finalmente o mini-bar, mesmo sem gelo, mesmo que o whiskey fosse menos que razoável e definhasse naquela patética garrafinha de plástico encardido. Bebeu uma, bebeu duas, mais um vodka para atestar, lá diziam os Mão Morta. E o som surdo dos nós dos dedos de uma incómoda mão contra a porta que o despertou, que merda era aquela? Seria sonho ou seria o regresso do inferno? Levantou-se sob o peso de tanta raiva acumulada que temeu por quem lhe destruíra a paz momentânea, pelo ser que lhe dinamitara aquele oásis de silêncio no meio de um deserto de ruídos incessantes. Abriu a porta de rompante e viu-a entrar no quarto 2170, viu-a puxar minuciosamente a porta para si até àquele perfeito milímetro que não a deixa fechar mas que mantém a dúvida sobre se a vontade germânica era mantê-la entreaberta. Estacou sem reacção e recordou-se da frase solta pela glacial negociadora alemã, aquelas palavras banais e aparentemente inconsequentes que povoam os corredores do poder depois do estrago feito: “Não fique assim com esse ar aborrecido. Azar nos negócios, sorte no amor”.