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A violência e o escárnio (pérola 3) - O mistério

Segunda-feira, 21.12.09

 

 

"- Na tua opinião, o que é que importa num homem?

 - A plenitude maravilhosa que eu sinto ao estar com ele, e isso nas coisas mais fúteis da existência. O sopro de alegria que ele me transmite. É assim que uma pessoa pode reconhecer a riqueza do amor que um homem encerra."

 

O que é que elas vêem de tão único em nós para as levar a escolher-nos? Que fatal atracção nos aproximou delas? Percorremos parte da vida sozinhos ou em matilha, desejando, no nosso dissimulado inconsciente, que a tal metade da laranja surja e nos complete. É como que um apelo do âmago de cada ser humano, um grito do mais fundo da nossa condição humana. Quem escolher? Que qualidades mais prezar? Que espúrios defeitos evitar? Não há respostas satisfatórias, não há teorias das razões do amor que não sejam falíveis. O mistério permanece insolúvel.

 

Em qualquer esquina pode estar a tal. O mais descontraído olhar pode queimar as pálpebras no segundo seguinte ao cruzar das retinas. Uma embirração bem humorada  pode facilmente passar a paixão assolapada. Percorremos esta vida sob a sombra das setas do cupido. A razão porque nos atingem no exacto milésimo de segundo em que trespassaram o coração da nossa amada mantém-se o eterno mistério, o mistério da vida. 

 

 

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publicado por bolaseletras às 22:35

Da série diz-me como começas, dir-te-ei o que vales - A violência e o escárnio (Albert Cossery)

Sábado, 05.12.09

 

 

Li algures, em tempos idos, que a forma mais rápida e fidedigna de perceber o valor de um livro é ler-lhe as primeiras linhas. Se nos arrebatar, intrigar, nos seduzir com a rapidez com que o fazem um inesquecível par de olhinhos azuis, é porque muito dificilmente nos irá desiludir. Da minha experiência posso-vos garantir que raramente este teste do algodão falha. Regressemos à obra " A Violência e o escárnio" e bebamos as primeiras palavras. A mim despertou-me os sentidos, na sua simplicidade e leve brisa de humor.

 

"O dia anunciava-se excepcionalmente tórrido. O polícia que começara o seu turno no mais distinto cruzamento da cidade teve de súbito a impressão de ser vítima duma miragem. O suor que lhe inundava o carão chato, dando-lhe o ar duma carpideira em plena actividade fúnebre, era certamente a causa daquela perturbação visual. Piscou os olhos várias vezes, tentando dar uma perspectiva mais clara à sua óptica enfraquecida, mas foi vão o leve esforço".

 

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publicado por bolaseletras às 09:57

A violência e o escárnio (pérola 2) - Da ambição e da doce ignorância

Terça-feira, 01.12.09

 

 

"A sua bondade e a brandura do seu carácter tinham-no levado sempre a preferir a companhia das crianças. No fundo, os adultos metiam-lhe medo; via invariavelmente em cada um deles um assassino em potência. Urfi precisava de amar sem segundas intenções, sem rodeios, sem rabulices, e sobretudo de poder perdoar. Mas como perdoar a um adulto? Separavam-no dos seus contemporâneos demasiados egoísmos, tolices, brutalidades, ambições desenganadas e azedas. A ambição! Todos andavam consumidos pela ambição, esporeados por ela. Queriam subir! Mas subirem a quê? Quando por fim lá chegavam - às alturas da glória ou do dinheiro -, aquilo fazia deles umas pesadas bestas sanguinárias, uns repugnantes monstros de arrogância, incapazes de sentir o menor fragmento dum sentimento humano. 

 

 

O que Urfi admirava nas crianças era sobretudo uma total ausência de ambição. Viviam contentes com o seu destino no dia-a-dia, ambicionando apenas o simples júbilo de estarem vivas. Mas por quanto mais tempo seria assim? A infância e a maravilhosa futilidade da juventude sumiam-se depressa. Essa inegável verdade enchia Urfi de amargura. Mais tarde, aquelas crianças iriam tornar-se homens e mulheres. Seguiriam a alcateia das feras, abandonando o seu intransigente amor feito de pureza para se perderem na multidão anónima de assassinos".

 

 

De que falamos quando abordamos a preocupação que é a espinhosa missão de educar uma criança? Sobretudo, dedicamo-nos a apagar os traços da infância, acreditamos que fazer dela um adulto, esquecido das suas infantis vacuidades, é o caminho para criarmos um ser bem sucedido neste complexo mundo que é o dos adultos. Em grossos traços, o desiderato de qualquer pai é o de dotar aquele pequeno e ingénuo ser de armas que o defendam do mundo e dos demais, revesti-lo de uma couraça que o torne imbatível face à inquestionável malícia de o mundo que o rodeia.

Em suma, o objectivo final é extrair do ser a criança, diluir-lhe as memórias de dócil ingenuidade, criar mais um adulto soldado nesta guerra que é viver.

 

Albert Cossery aponta-nos o caminho. Ainda vamos a tempo. De inverter o caminho. De nos olharmos ao espelho e de assumirmos as bestas que somos. De regressar à infância.

 

 

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publicado por bolaseletras às 14:42

A violência e o escárnio (pérola 1) - Curvas em alto mar

Quinta-feira, 26.11.09

 

 

"Uma jovem com ar de deusa, os seios a baloiçarem-lhe no corpete como dois navios no mar alto, rumava para a esplanada. Passou - fugitiva visão de estupro - levando no sulco das suas ancas paixões infindas. Os clientes de uma mesa próxima desataram logo a falar como entendidos daquela beleza de mulher; referindo-se às ancas dela como se acabassem de descobrir a verdade fundamental do universo."

 

Fazer rewind e assentar arraiais numa qualquer esplanada no meio da cidade, ou, mais refrescante, naquela saudosa praia que nos gravou, para sempre, aquele Verão na memória. Desporto dos tempos quentes, esse de lavar os olhos com o desejo que passeia mal coberto pelos tops da moda, pelos biquinis sempre, sempre, um número bem abaixo da medida da musa do momento. Acólitos daquela religião, bebemos as gotas de suor que lhes escorrem do pescoço, deliciamo-nos com os bronzeados da estação, fechamos os olhos e deitamo-nos lado a lado na toalha. Adormecemos e só queremos nunca acordar. Mergulhar no sonho das paixões infindas.

 

A preguiça de Cossery está toda neste trecho. Porque a preguiça é contemplar toda a beleza do mundo, devorá-la com os olhos da alma e dos sentidos, debatê-la numa qualquer esplanada. Sem a obrigação de exercer a cansativa tarefa de a perseguir. Assim, bem sentadinhos na esplanada, certamente a beleza não escapará.

 

 

 

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publicado por bolaseletras às 23:00

A violência e o escárnio - Albert Cossery

Quinta-feira, 19.11.09

 

 

 

Como combater o poder político instalado, a tirania vigente, sem lhe dar demasiada importância? Essa resposta surge na brilhante obra de Albert Cossery, "A violência e o escárnio". O combate político de um grupo de amigos passa pela criação de situações burlescas que ridicularizam o despótico governante. A trama desenvolve-se acompanhada por uma reflexão irónica sobre o poder, a dessacralização deste por intermédio de uma teatral e divertida farsa que o expõe na sua frágil e artificial seriedade institucional.

 

 

Pelo meio, cruzamo-nos com o Egipto e as vivências árabes, com hábitos que nos soam estranhos. Cossery, o escritor da preguiça, exemplificou com a sua filosofia de vida um novo modo de encarar os ritmos da sociedade actual. Com esta obra, mostra-nos o que para ele é o melhor método para combater o status quo: acima de tudo, convém não levar o sistema a sério. Apesar de ser essa a maior aspiração daqueles que dominam o sistema, é fulcral que os não levemos a sério. A preguiça, essa boa conselheira, recomenda a violência sob a forma de escárnio.

 

 

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publicado por bolaseletras às 20:16

Albert Cossery (1913-2008) - O escritor da preguiça

Quarta-feira, 11.11.09

 

 

Enerva-me ler entrevistas de escritores. Bons ou maus, talentosos ou popularuchos, é raro aquele que não descreve o seu dia a dia de criação literária como uma rotina aborrecida e circular, como o são todas as rotinas. Faz algum sentido? Não deveria o trabalho criativo ser a antítese das prisões mundanas? Justifica-se que as grilhetas de um funcionário de escritório algemem igualmente a inspiração dos criadores? Isso para já não falar nessa nova raça de escritores que desperta, os escritores em part-time, aqueles que depois de um dia intenso de trabalho arranjam tempo para escrevinhar um livrinho ou outro. Sim, falo dos já famosos escritores jornalistas/vedetas de televisão, que aproveitam a visibilidade pública para darem uso ao dedo e ao ego.

 

Contrariando o mecanicismo destes escritores autómatos, Albert Cossery prezava acima de tudo a preguiça. Escreveu com a calma de quem respira sem pressa de consumir o oxigénio, como que saboreia a vida que lhe foi concedida sem urgência em vivê-la, apenas contemplar placidamente. Durante a sua longa carreira, escreveu uma linha por semana, um livro em cada oito anos, o que resultou em oito livros numa vida. Para quem nasceu em 1913, dá para perceber que Cossery reflectiu bem em cada palavra, cada acção, cada introspecção e diálogo das suas personagens. A sua escrita espelha esse cuidado com a ordenação das palavras, com a apaixonada preguiça com que amou as palavras e os livros.

 

 

Para a génese deste modo de encarar a arte de escrever, muito contribuiu a sua história pessoal. O pai, proprietário rural, fugia do objectivo de acumular riqueza, promovendo entre os filhos a rejeição e o desprezo pelo trabalho. A mãe, analfabeta, levava-o ao cinema, no tempo dos filmes mudos, para ele lhe ler as legendas. E os irmãos mais velhos, incorrigíveis leitores de Nietzsche, Dostoievski ou Baudelaire, transmitiram-lhe a paixão pela literatura universal.

 

Para finalizar, deixo-vos com um excerto do livro de diálogos entre Cossery e Michel Mitrani (Conversas com Albert Cossery), no qual Cossery expõe toda a sua filosofia de vida, que influencia decisivamente a sua escrita:

 

"Um idiota preguiçoso continua sempre a ser um idiota! E um preguiçoso inteligente é alguém que reflectiu acerca do mundo em que vive. Não se trata pois de preguiça. É tempo de reflexão. E quanto mais preguiçoso fores mais tempo tens para reflectir."

 

Ah, a bela preguiça...

 

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publicado por bolaseletras às 19:52





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