Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
O cemitério de folhas
Olhava as letras como quem lê, mas sofria de uma profunda incapacidade de beber o prazer da leitura, da arte, dessa imitação da vida, da própria vida. Recordava outras leituras, vivas, partilhadas, orgias de palavras que inevitavelmente se diluíam na fogueira dos corpos. Entendia as memórias como a parte morta, doce ou amarga, da vida que os dias e os anos lhe tinham devorado. Sopravam-lhe que era possível viver de memórias, seguir em frente e sorrir com o terno abraço de quem já não o tocava, que era suficiente sobreviver gloriosamente com a lembrança daquele beijo. Ele abanava furiosamente a cabeça, recusava-se a viver na imobilidade, na triste dança das folhas mortas. As memórias já só lhe faziam sentido como um atalho para o caminho a percorrer. Rejeitava deixá-las morrer, melhor, insistia em impedi-las de viver. Enfrentava as memórias como D. Quixote desafiava os moinhos, louca e convictamente, tudo fazendo para as reviver, para que ganhassem nova vida, o seu desígnio era ressuscitá-las do cemitério de folhas.
Ela olhou para ele e sorriu. Sempre o mesmo adolescente borbulhento, sempre o mesmo tolo. E, ainda assim, por mais que o negasse, não conseguia deixar de o amar, mesmo que os seus conceitos de amor fossem, supostamente, distintos.
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Amor à primeira vista
Há aqueles dias, semanas, meses, em que um tipo deixa de ter algo interessante para dizer. Está-se tão embrenhado na vida que só se executa, anda para a frente, fecha dossiers, desenrola projectos, acorda putos, deita putos, monta móvel do Ikea, enche a bagageira até ao limite, despeja as malas para o velho casulo, lava a loiça, seca a loiça, zapping, mais zapping, a merda do Sporting que caminha em círculos infinitos de incompetência e imaturidade, a política nacional nas mãos do mestre da táctica, a política lá fora nas mãos de loucos furiosos ou de ursinhos fofinhos, o diabo a sete. Um gajo vai a ver e o que interessa é mesmo isto. A primeira vez que os lábios se encontram...
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O Verão é...
…uma janela para o mar. Nada mais, só o mar, o horizonte infinito do azul abraço, a vida como um sonho, o medo de te perder devorado pelo inigualável marulhar das ondas.
The window on the sea - Ferdinando Scianna
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10 anos do pequeno Miguel
A voracidade com que o tempo por nós passa adiou por alguns dias o já tradicional texto sobre mais um aniversário do meu primogénito. Há quem diga que passa muito rápido a infância, que aproveitamos pouco esta fase maravilhosa da existência. Discordo. Esta aventura que se iniciou há 10 anos sinto-a como parte de mim desde sempre. Os sorrisos, as descobertas, os momentos de pura felicidade, já não me recordo nitidamente do que era a vida sem esta partilha que me insufla o coração até ao limite. As fitas, os choros, as desilusões ainda tão pueris, a luta constante contra os descaminhos das frustrações que ainda não domina, a cada ocorrência revejo-me nelas, na infância que também vivi. Não é sem um lamento interior que me olho ao espelho da minha incapacidade de lhe explicar que é isso que o fará crescer e dele fará um homem, que só assim as alegrias serão efetivamente valorizadas e saboreadas. O amor por um filho não se explica, dizem também, mas creio que a genuinidade desse amor se reforça a cada dia, com a crescente compreensão pelos pais que, sobretudo na fase da “dependência” de nós, a sua felicidade é em boa parte resultado do amor que lhes damos, das experiências que lhes proporcionamos, da forma como os sabemos entender na sua essência sem pretendermos ajustá-los à nossa visão do que deveriam ser. Amo-te, Miquinhas, venham mais 10!
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Xeque-mate
Sabia que a melhor defesa era o ataque. Não porque seguisse as tácticas estéreis dos livros da moda mas, simplesmente, porque a vida lhe ensinara essa crua lição. Esperar pacientemente era mais da sua natureza, mas os resultados que obtivera refugiada nessa confortável passividade revelavam à saciedade que o conforto não era sinónimo de sucesso. Fora quando avançara a dama e as torres sem medos, enfrentando o rei e seus bispos de peito aberto, que conquistara terreno, que ganhara o respeito e a admiração das suas presas. Ao invés, quando caminhara passo a passo, lenta e cautelosamente, com os seus tímidos e inofensivos peões, apenas obtivera um sorriso sarcástico do rei e suas tropas, prontas para a espezinhar. A conquista implicava risco e era o risco que a mantinha viva. O receio era o rastilho para uma derrota humilhante.
No último lance, no xeque final, olhou o rei nos olhos e ele cedeu-lhe a sua casa, o destino desejado, a derradeira entrega, o momento em que a vitória de um significava a vitória do outro e em que os medos, a ambição, e a vitória se fundiam e esfumavam no calor daquela entrega.
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2019
Steve McQueen e Neile Adams, fotografados por John Dominis, 1963
Decisões irrevogáveis para o ano que se avizinha. Convicções inabaláveis. Objectivos perfeitamente definidos. Rotas traçadas a regra e esquadro. O sucesso ao virar da esquina, a felicidade é já ali, é só querer, como se o resto do mundo e todos os que nos rodeiam não tivessem outra hipótese senão conformar-se ao destino que traçámos para os próximos 365 dias.
Outra hipótese:
Respirar apenas. Lentamente, como se cada segundo fosse uma bênção. Sorver o néctar dos Deuses gota a gota, como se a próxima fosse a última e daí não viesse mal ao mundo, porque um dia, inapelavelmente, esse dia há-de ser o último. Ouvir sem pressa. Falar devagar. Silêncio. Falar só se apetecer. Perceber a importância de calar. Amar. Beber mais um golo, lentamente.
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Da série "O olhar do amor" - Arco íris de areia e sal
O olhar do amor é quente como o sol que banha o mar, sabe a sal e a lágrimas de felicidade e de dor este amor que turva o que os olhos alcançam, que tudo torna cristalino sem nada deixar ver. O olhar do amor é de sexo adocicado e de ternura cor de mel, abraçado por nuances de tesão desenfreada e enjoativos xi-corações. O olhar do amor é da cor de um arco-íris a preto e branco.
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Da série "O olhar do amor" - 19.º
Fotografia por Alex Webb/Rebecca Norris Webb, em Nuevo Laredo, Mexico, 1996, ano em que o casal de fotógrafos celebrou o 19º aniversário do seu casamento.
Provavelmente há imagens que espelham melhor o amor do que outras. Há também a possibilidade da imagem que julgamos melhor mostrar o amor apenas revelar o nosso entendimento sobre esse amor, o que é para nós o amor. É possível associar o amor a uma infinidade de atos, estados de espírito, manifestações: carinho, sensualidade, alegria, conforto, paixão, protecção, olhares esgazeados de tesão, olhos marejados pela água mansa de um manso amor. Inicia-se aqui a série “O Olhar do amor”. Porque amor precisa-se.
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Sobre o Sporting e a sua essência - o amor ao desporto e ao futebol
Que bom foi ver 5.000 adeptos leoninos, em pleno Emirates, contra todas as agruras, renegando as sombras dos dias difíceis, cantar bem alto o seu amor pelo Sporting que é, obviamente, indissociável do seu amor pelo futebol. Que bom foi ver o orgulho e a alegria do Tiago Fernandes, filho do nosso Manel, por poder representar e dignificar o clube do seu coração. Tivemos pouca posse de bola, fizemos pouca mossa no ataque, mas lutámos que nem leões e dignificámos as nossas cores e o nosso país. Sem e-mails a amaciar apitos, sem toupeiras a desviar a bola da baliza, só os nossos rapazes, cheios de garra e de esperança num amanhã melhor. Obrigado Tiago, boa sorte Kaiser!
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Histórias da carochinha
Há quem grite ao vento e à pessoa amada que é um livro aberto, que o seu passado é nítido como as águas do rio que corre cristalino e sem percalços, como se quisesse convencer-se a si e ao mundo que a vida não é uma vaga descontrolada que continuamente se estilhaça e reconstrói contra as rochas afiadas que ladeiam o ribeiro tortuoso que é o caminho que todos percorremos. Gente perfeita com passados e presentes impolutos são sonhos de gente que não sabe o que é ser gente, como se os milhares de corpos que se cruzam e fugazmente se olham nas alamedas caóticas da cidade fossem carapaças de aço de robots imunes ao erro, à inveja e à paixão. Somos todos potenciais serial killers, Casanovas ou candidatos a vigários, somos o exemplo humano da fidelidade canina ou intrépidos traidores que não resistem ao cheiro da carne fresca. Somos Yin e Yang, força e fraqueza, passividade mórbida e energia destruidora, somos tudo e nada somos, mas todos temos histórias só nossas, pecados inconfessados e sonhos proibidos. O resto são histórias.