Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Marilu, Justino e a fonte dos males da condição humana
Fotografia de André Steiner
Por entre dois dedos de conversa, sem grande expectativa no que por aí viria, há uns dias um amigo decidiu de forma leve, como quem descasca e engole dois tremoços amaciados por um golo de imperial, brindar-me com uma simples e cortante reflexão sobre a origem dos males da condição humana. Dizia ele, enquanto analisava distraidamente a espuma da cerveja a esfumar-se das paredes do fino vidro, que a insatisfação é a principal característica que nos distingue dos animais. Somos o único bicho que nunca se contenta. Que não aproveita realmente, mesmo que por momentos pareça que o está a fazer. Somos o único ser vivo que nunca está presente. Estamos sempre a pensar no amanhã que virá, que esse amanhã será melhor. Os animais não têm futuro, é-lhes conceptualmente vedado. Por isso, vivem no presente, vivem-no mesmo, porque nada mais há para eles. A insatisfação é a essência do ser humano.
Bebo-lhe as palavras enquanto a imperial amolece no copo. Penso nas horas que perco a observar as minhas duas tartarugas - de seu nome Marilu e Justino - na maravilha que é o funcionamento do seu cérebro reptilóide, invejo-lhes profundamente a forma como repetidamente disfrutam dos seus dias. Comer, dormir, apanhar sol, correr e nadar uma atrás da outra com a felicidade de como se o fizessem sempre pela primeira vez. A Marilu, mais pequenina, morre de amores pelo Justino, também chamado de Justinão devido ao seu imponente porte. O zénite do dia dela é quando, finalmente e após inúmeras tentativas, consegue equilibrar-se no topo da carapaça do seu parceiro e tirar uma sorna de algumas horas, aproveitando o cansaço e a eterna paciência do pobre coitado. Inerte para não a incomodar, o olhar do Justino perscruta o nada, recebe o sol como se fosse tudo o que pretende para toda a vida. O sol, apenas o sol, e o aconchego de Marilu nas suas costas.
Ao fim de 5 minutos já perdemos a capacidade de ouvir o que o parceiro está a dizer. Ao fim de 10 segundos pós-orgasmo já estamos a pensar no que fazer a seguir, como se não tivéssemos acabado de ser abençoados pelo êxtase da criação. Como se disfrutar realmente de um momento por alguns minutos fosse a morte de alguma parte de nós. Como se o amanhã fosse o ansiado e inalcançável presente que eternamente buscamos e em que jamais nos instalamos.
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See Naples and die
Nápoles. Máfia, Maradona, crime, um estranho fascínio pelo lado negro da natureza humana. Sei que não morrerei sem visitar aquelas ruas míticas onde se adorou sem limite o maior dos maiores, Diego Armando Maradona. Mas Nápoles será muito mais do que essa louca paixão, vejo-o nos olhos dos personagens reais, de carne e osso, com cheiro intenso a gente que ilustra este post. O fotógrafo Sam Gregg alimenta-me o fascínio com esta coletânea de fotos intitulada “See Naples and Die” (https://www.lensculture.com/articles/sam-gregg-see-naples-and-die). O feio pode ser contraditoriamente belo, o medo uma irresistível fonte de atração, a violência mais não ser do que uma desajeitada e fogosa forma de amar. Um dia perder-me-ei nas tuas ruas, é só o que sei.
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O tempo da falta de tempo
A arte do sentimento teima em desacompanhar a sucessão vertiginosa de acontecimentos, de exigências, solicitações, expedientes, prazos e tarefas que se atropelam. A vida recusa olhar-se no espelho, ter tempo para o autoconhecimento. Os dias fogem por entre os dedos, não como grãos de areia que, ainda assim, apresentam alguma doce lentidão na sua queda modorrenta, mas como cataratas de água pesada como chumbo. Por entre os afogamentos de sensações perece a empatia, definha a capacidade de olhar e amar o outro, o vulgar outro e o Outro que tudo sempre foi para nós, mas que a vida teima em encostar nas vielas da falta de tempo. Como se a voracidade do tempo fosse mais forte do que nós. Será? Ou será este soçobrar perante a corrida destemperada dos ponteiros do relógio uma mera distração, o deixar-nos levar pela corrente sem sequer tentar nadar no sentido contrário desse silencioso turbilhão? Voltar a saber amar é saber parar o tempo, recusar a escravidão dos supostos “tempos modernos”, os tempos da falta de tempo. Olhar, parar, recusar ir na onda. Viver. Amar.
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Make love, not war - day 3
Para que queremos o amor? O que mudamos na nossa vida quando o encontramos? Cuidamos de o alimentar, de lhe atenuar as dores, de lhe retardar o inevitável definhar? Porque o procurámos em primeiro lugar? Amamos o outro como sempre sonhámos ser amados? O excesso de amor, existe? Existindo, onde nos conduz essa ausência de moderação na nobre arte de amar? Aborrecem-nos, amolecem-nos, os desregramentos do amor? Ou, em sentido contrário, o excesso de amor será o rastilho para o recrudescer da semente do ódio que miserável e irremediavelmente habita o ser humano? Será a guerra uma consequência desses excessos, uma resposta aos instintos selvagens que o amor entorpece e que, hipoteticamente, o seu excesso desperta? Para que queremos o amor?
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Do mal
As imagens deviam surgir despidas de palavras. Estrangulados pelo incessante ribombar dos mísseis, despojados de nós pelo vazio da destruição devíamos fixar o olhar no horror da guerra. O ódio sem sentido devia calar-nos até ao âmago da dor. Não a nossa dor, a dos que assistem incrédulos e revoltados, por entre séries da Netflix e o bulício do quotidiano, ao terrífico espectáculo da crueldade humana. Falo da dor dos mortos, dos órfãos, dos que ficaram sem passado e sem futuro. Crianças e bebés mortos. Crianças e bebés mortos. Crianças e bebés que sobrevivem e não sabem bem para quê. Quando a fúria do ódio se sobrepõe à força do amor, é o sinal para olharmos fixamente para o fruto do que pode ser a maldade humana. É altura de abdicarmos do conforto e de tomar atitudes. De cessar o mal, de combater a dor. É o momento de não ter medo da mudança, pois ficar onde estamos é aceitar que o mal pode vencer.
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Coluna de fumo - Denis Johnson
A meio do romance “Coluna de fumo”, de Denis Johnson, experiencio as sensações da primeira viagem de um marinheiro de água doce por entre as vagas incomensuráveis de um qualquer mar colérico. Zonzo, avanço receoso por entre páginas pontuadas por guinadas e desvarios. Uma selva de personagens perdidas e alucinadas que se multiplicam numa história que avança aos solavancos e sem aparente fio condutor. O assassinato de Kennedy, as vergonhas e desgraças da guerra do Vietname e de outras confusões americanas entre 1963 e 1970, o brutal impacto do nonsense de enviar os filhos da nação para um cruel destino, o estraçalhar do futuro, de famílias, a hipoteca insanável da saúde mental de toda uma geração. As personagens espelham na perfeição a demência parida de uma guerra idiota, os diálogos inconsequentes e as ações alienadas aproximam-nos do que provavelmente será o estado de espírito dos fantasmas que habitam os tempos de uma guerra.
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Tão simples
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Crónicas da pandemia - o medo
A parte do mundo que me é concedido ver da janela do quarto do rapaz mais velho, agora convertido, no período diurno, em escritório de teletrabalho, revela um curto trecho de estrada, entrecortada por árvores e ladeada pela velha e gasta calçada portuguesa. Na estrada o raro ruído dos carros entristece ainda mais o cinzento do céu. Na calçada são poucas ou nenhumas as almas penadas, quase sempre limitadas aos pesarosos e mascarados passeadores caninos. Há meses que este cantinho, este outrora viçoso blog, tem andado assim, ensimesmado, mal alimentado, macambúzio e desinspirado, refletindo o estado geral da nação que esta janela dos Olivais descerra, imitando um mundo que lá fora se lamenta, estupefacto e impotente no combate ao vírus invisível.
Escuto alguns - hoje menos do que ontem - que vislumbram nestes tempos novos e estranhos uma porta aberta para renovadas visões da humanidade, para uma crescente fraternidade, para quotidianos mais calmos e reflectidos, para gentes mais próximas do seu eu e da sua essência, mais preocupadas com as necessidades espirituais do que as materiais. Balelas, diz o meu vizinho do lado, próximo de um esgotamento após meses de teletrabalho ao lado da mulher, estado esse recentemente agravado com o regresso das três crianças ao quotidiano diário.
O mundo pede-nos algo que não estamos preparados para dar. Solidariedade, maleabilidade, pensar fora da caixa, respeito pela natureza. Aqui e ali vamos vendo algumas manifestações dessas respostas, mas tão deslaçadas e espaçadas que não permitem unirmo-nos num combate efetivo à praga virológica que nos atingiu como um tsunami invisível. Na calçada, arrasta-se uma velhota ao telemóvel, máscara descaída, semblante calmo, como que desafiando o que sabe há muito, que é certo e que não teme: a morte, a morte que paira nos pensamentos dos novos fazendo deles velhos assustados. Precisamos de chegar a velhos para deixar de ter medo, está mais do que visto. Precisamos da calma dos velhos, das suas certezas quanto às incertezas da vida (qual será o dia, a hora, o momento da despedida?), precisamos de não ter medo. O medo, muito para lá de nos fechar nestas quatro paredes de tijolo, fecha-nos no casulo de nós mesmos, na loucura que é vivermos sós nas nossas quatro paredes. Vejam lá isso.
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Quanto tempo mais?
Quando deixamos de poder respirar em liberdade pouco há mais em que pensar do que essa ausência de liberdade. A máscara que nos autoimpusemos é a medida da nossa mente, como se o horizonte para lá do bafo quente e claustrofóbico que incessantemente respiramos tivesse perdido a sua dimensão de sonho. As conversas começam e terminam no vírus, nas saudades de um modo de vida recente que sempre tomámos por garantido, no “foda-se, esqueci-me da máscara”, na raiva por não podermos visitar sem máscara e mil cuidados os nossos pais, por separarmos os filhos dos seus velhos amigos - as avós e os avós - em nome da saúde, da longevidade que, por este caminho, deixará de fazer tanto sentido assim. Entretanto, enquanto nos protegemos deste maldito vírus, que poupa os novos e mata os velhos, deixamos que mais gente morra de outras doenças, porque tiveram medo de procurar os habituais cuidados médicos a que recorriam para evitar e combater os outros milhares de doenças, porque os próprios cuidadores e serviços de saúde estiveram focados no vírus que enche os écrans dia e noite, o vírus que é a bitola do sucesso de políticos em constante frenesim para mostrarem ao mundo que não darão tréguas à disseminação do bicho, é o maldito e minúsculo vírus que decidirá quem liderará o mundo outrora livre.
Nas escolas os miúdos riem e brincam dentro de uma nova realidade, porque são plasticina que a tudo se adapta, mas sentem a artificialidade dos recreios, sofrem com o calor da máscara na sala de aula, perdem capacidades de aprendizagem porque os óculos embaciam, porque não estão para pedir a palavra e falar em esforço, porque os professores se enredam na dificuldade de passar a mensagem, porque tudo aquilo vai contra a sua natureza, contra a nossa natureza. A natureza que teimamos em negligenciar ameaça engolir-nos neste medo invisível. Quanto tempo demorará a salvífica vacina? Quantos mais vírus surgirão depois dessa suposta salvação? Quanto mais tempo levaremos a tirar a máscara que nos impede de ver que a causa de tudo isto somos nós?
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Nada de nada
Por aqui o silêncio acompanha os tempos estranhos que vivemos. Não sabemos muito bem o que dizer, o futuro é incerto, todas as palavras parecem petulantes ou desnecessárias. A vida encarrega-se de desmentir essa ideia idiota de que somos os donos de uma qualquer razão. Tenho por exemplo o hábito de escrever sobre mulheres, relações, seduções, e o que sei eu da vida ou do fruto proibido, do amor ou da falta dele? Quem sou eu para me armar em sabedor de coisa alguma?
“- Porque escreves dessa maneira sobre mulheres?
- De que maneira?
- Tu sabes.
- Não, não sei.
- Pois bem, eu acho que é uma pena dos diabos que um homem que escreve tão bem como tu não saiba nada de nada sobre mulheres”
In “Mulheres”, de Charles Bukowski