Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Cormac McCarthy
“People were always getting ready for tomorrow. I didn't believe in that. Tomorrow wasn't getting ready for them. It didn't even know they were there.”
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Este país não é para velhos (pérola 5) - Da fé num punhado de nada
"Bell observou-o. O velho apagou a beata na tampa do boião. Bell tentou pensar na própria vida. Depois tentou não pensar. «Não te tornaste descrente, pois não, tio Ellis?»
«Não, não, nada disso.»
«Achas que Deus sabe o que está a acontecer?»
«Deduzo que sim.»
«Parece-te que ele consegue pôr travão a isto?»
«Não, acho que não».
É este o grande enigma e a contradição insanável da fé católica, das fezadas dos crentes, do fundamento de toda uma turba que persegue o sonho cristão. Crê-se no Salvador porquer dele vem a sabedoria e a bondade, é dele a mão que guia os povos, nele se concentram as preces de uma vida melhor, de felicidade e prosperidade sem fim. Tanto poder idolatrado, tanta incapacidade em dar a volta às miseráveis vidas de seus súbditos. Em que ficamos, Senhor?
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Este país não é para velhos (pérola 4) - Acabaram as pastilhas Gorila
"Há uns tempos li nos jornais que um grupo de professores encontrou por acaso um inquérito que foi enviado nos anos trinta a um certo número de escolas de todo o país. Incluía um questionário sobre quais eram os problemas mais graves que aconteciam nas escolas. E encontraram também os formulários de resposta às perguntas, que tinham sido preenchidos e devolvidos dos quatro cantos do país. E os problemas mais graves que os professores apontavam eram coisas como conversas nas aulas e correr pelos corredores. Mascar pastilha elástica. Copiar os trabalhos de casa. Coisas desse género. Então eles pegaram num dos impressos que ainda estava em branco e policopiaram uma data de exemplares e enviaram-nos para as mesmas escolas. Passados quarenta anos. Bom, algum tempo depois receberam as respostas. Violações, fogo posto, homicídio. Drogas. Suicídios.
E eu ponho-me a pensar nisto. Porque muitas das vezes em que digo que o mundo está a ir direitinho para o inferno ou alguma coisa do género, as pessoas limitam-se a fazer-me um sorriso e dizem-me que eu estou a ficar velho. Que este é um dos sintomas. Mas cá no meu entender, se alguém não vê a diferença entre violar e assassinar pessoas e mascar pastilha elástica é porque tem um problema muito mais grave do que o meu. Quarenta anos também não é assim tanto tempo. Talvez os próximoas quarenta façam acordar algumas pessoas da anestesia em que caíram. Se não for demasiado tarde."
Pela voz do Xerife Bell escutamos Cormac McCarthy pôr o dedo na ferida de um dos maiores dramas das sociedades modernas. A incapacidade para avaliar as mudanças de hábitos, costumes e valores que, lenta e insidiosamente, se infiltram nos pilares da sociedade e nos laços que unem ou desunem as pessoas. A imagem do trecho acima cola-se na perfeiçao a uma sociedade em rápida e constante mutação como os E.U.A.. Mas podemos nós afirmar que no nosso prédio, no nosso bairro, no tecido social da cidade que nos envolve, as mutações não foram igualmente devoradoras, sem que lhes déssemos a devida importância?
Essa aparente inconsciência e desinteresse têm, a meu ver, uma raíz comum. Sentimos o rumo que as coisas levam como algo que não podemos mudar, um género de destino auto-infligido no nosso futuro, e, mais grave, no futuro dos nossos filhos. O conformismo nasce daí, da ideia de que não há nada a fazer, as coisas são como são. Mais fundo, nas profundas razões da inacção, está um entranhado processo de "preguiça social", que serve de travão aos fracos impulsos de combater o status quo. E afundamo-nos no sofá. E assistimos ao esboroar do mundo como o conhecemos enquanto mascamos a pastilha elástica que nunca mais será a mesma.
p.s. - As fotografias que acompanham são de Elene Usdin.
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Este país não é para velhos (pérola 3) - Os falsos órfãos
"A Loretta contou-me que ouviu falar na rádio de uma certa percentagem de crianças deste país que está a ser criada pelos avós. Já não me lembro do número. Era bastante alto, pareceu-me. Os pais não querem ter esse trabalho. Conversámos sobre isso. Demos connosco a pensar que quando a próxima geração crescer e também já não quiser criar os filhos, quem é que vai tomar essa tarefa a seu cargo? Os pais deles vão ser os únicos avós disponíveis e nem os próprio filhos quiseram criar. Não encontrámos resposta para isto".
O pessimismo de Ed Tom é como um vento gélido que arrasa os alicerces da sua pátria, os bons e velhos States. Quando o tronco de uma sociedade, a família, inicia um irreversível processo de degradação, adivinham-se tempos que já não serão os tempos dos velhos que fizeram o país. Sempre que um elemento central de uma instituição anuncia a sua auto-destruição há que começar a pensar em alternativas. No momento em que a podridão já cheira a milhas é imperativo varrer o rasto de vísceras. Se a família é o suporte da sociedade, o governo é o suporte da democracia. Conhecem alternativas para a família? E para o governo?
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Este país não é para velhos (pérola 2) - A sorte grande
Cormac McCarthy e os irmãos Cohen, realizadores de "No Country for old men"
"As pessoas julgam que sabem o que querem, mas geralmente não sabem. Às vezes, quando têm sorte, acabam por alcançar o que querem, no fim de contas. Eu sempre tive sorte. Na minha vida inteira. De outra forma, não estaria aqui. Rixas em que me vi metido. Mas aquele dia em que a vi sair do bazar do Kerr e atravessar a rua e ela passou por mim e eu levantei o chapéu para a cumprimentar e ela me retribuiu com um quase sorriso, esse foi o momento da minha vida em que a sorte mais me bafejou. As pessoas queixam-se das coisas más que lhes acontecem e que acham injustas, mas raramente falam das coisas boas. Raramente falam do que fizeram para merecer essas coisas. Não me recordo de alguma vez ter dado ao bom Deus assim tantos motivos para me abençoar. Mas ele fê-lo."
O trecho acima é um feliz exemplo das reflexões do Xerife Bell que percorrem toda esta obra de Cormac McCarthy . Dir-se-ia que o autor usa o velho xerife como um alter ego. As páginas em que o exausto cumpridor da lei desenrola o novelo da sua vida são - como o são todas as palavras escritas por qualquer escritor - o livro aberto da vida e do pensamento de McCarthy. É desesperante a ingratidão com que aceitamos o que de bom a vida nos concede. O foco incide invariavelmente na maior desgraça ou no menor contratempo, procuramos os motivos de uma vida falhada como quem busca a infelicidade eterna.
Não sei se este modo de encarar a vida é bem portuguesinho, ou se atravessa fronteiras. Ou melhor, desconfio que o "cá se vai andando", o "menos mal, obrigado", a própria música que tão bem nos retrata "com a cabeça entre as orelhas", mais não são que bem entranhados legados de uma religiosidade doentia e mal aplicada. "Venham a mim os desgraçadinhos" não é o mesmo que apelar "venham a mim os pobres de espírito". Há que descer do Monte das Oliveiras e abraçar a vida sem o eterno anseio protector pela mão que embala o mundo.
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Este país não é para velhos (pérola 1) - Uma mala cheia de nada
"A mala encontrava-se cheia até à borda de notas de cem dólares. Estavam em maços presos com cintas, cada cinta carimbada com a indicação $10.000. Ele não sabia com exactidão quanto dinheiro ali estava, mas tinha uma ideia bastante aproximada. Ficou sentado a olhar para as notas, depois fechou a aba e continuou sentado de cabeça baixa. Tinha ali a sua vida inteira, pousada na sua frente. Dia após dia, do nascer ao pôr do sol, até ao momento da sua morte. Tudo resumido a dezoito quilos de papel dentro de uma mala."
Cormac McCarthy aponta-nos assim a direcção a que nos levará esta mala, este livro. É estranho que o faça na página 25, ainda com tanto caminho por percorrer. Ou então, fá-lo por que o que menos lhe interessa são os acontecimentos que narrará. Assimilada essa a sua intenção, pede-nos que nos foquemos nos homens, nas tempestades que os habitam, nas razões que os movem para além do conteúdo daquela maldita mala. Sim, porque a mala e o dinheiro que envenena as almas é um mero pretexto. O mal está lá, antes da mala, antes do brilho da fortuna, habita em nós antes de tudo isto.
Só esperamos pela oportunidade, pelo convite do destino. Em forma de mala, de uma tentação feminina, ou de um chorudo e aniquilante emprego. São insondáveis as formas dos demoníacos desígnios. Entregamo-nos nas mãos de um destino esvaziado de futuro sem sabermos que este já estava marcado, residia nos nossos genes, fervilhava na nossa inquieta natureza. A predisposição para a desgraça nasce muito antes da sua materialização. Não matem o mensageiro - o remetente conhecemo-lo bem, somos nós os profetas da desgraça.
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Este país não é para velhos - Cormac McCarthy
O meu terceiro livro de Cormac McCarthy é o mais fácil de ler dos três, e, parecendo uma contradição nos termos, o que menos me fascinou. Da complexidade narrativa de "O meridiano de sangue" passamos para uma história bem contada, algo rectilínea e que caminha numa direcção que vamos desvendando pelo desenvolvimento da trama. Se em "A Estrada" nos é dado a conhecer algo de único e assustador (a destruição do mundo como o conhecemos e a possibilidade próxima de vivermos essa realidade), em "No country for old men" (mais uma vez isto soa tão melhor em inglês ) sabemos ao que vamos, há o mal e há o bem e se o bem não vence é porque este país já não é para velhos.
É um livro fraco ou desinteressante? Meus senhores, para que Cormac McCarthy caísse nessa esparrela teria primeiro o José Rodrigues dos Santos de tornar-se um escritor. Resumo: Llwelyn Moss encontra uma pipa de massa, para mal dos seus pecados essa felicidade provém de negócios de droga, os maus hão-de recuperá-la (personificados nesse fantástico representante do diabo, Chigurh), a autoridade ancestral e envelhecida há-de querer repor a legalidade e defender o pobre inocente (o velho Xerife Bell), mas nada há-de ser como era há 20 anos atrás. Hoje o mal não trava perante a lei, a lei não se adapta à escalada do terror.
Provavelmente cometi um erro básico antes de mergulhar nesta obra. Por contingências vários ou por meros acasos, e, contrariamente a uma regra a que me auto-vinculei, antes de a ler vi o filme. Consequência dessa violação de regras, foi que cada página seguinte estava indelevelmente associada às imagens que retive, daí a possível perda, mesmo que inconsciente (pois o livro é muito mais rico), de suspense. Por outro lado, associar Chigurh a uma interpretação sobre-humana de Javier Bardem e ler as reflexões do Xerife Bell na pele gasta e na voz infinita de Tommy Lee Jones, traz alguma riqueza e vida à secura das páginas. É um sistema de pesos e contrapesos que talvez tenha prejudicado mais a emoção da leitura, do que a tenha tornado mais palpável. A maior riqueza do livro são os alucinantes diálogos em que intervém Chigurh e, sobretudo, os monólogos do Xerife Bell, este último na incessante busca das razões que a sua razão deixou de conhecer. Simplesmente, porque o seu país já não é para velhos.
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A estrada (pérola 3) - O futuro inimaginável
"Os dias passavam, vagarosos, sem que ninguém os contasse, os assinalasse num calendário. Lá longe, ao longo da interestadual, enormes filas de carros calcinados e cobertos de ferrugem. O metal despido das jantes mergulhado numa pasta dura e cinzenta de borracha derretida, em anéis enegrecidos de arame. Os cadáveres incinerados, mirrados até ao tamanho de crianças e apoiados nas molas nuas dos assentos. Milhares de sonhos sepultados naqueles corações reduzidos a lascas de pedra.
Eles continuaram a caminhar. Palmilhavam o mundo sem vida como ratinhos numa roda. De noite, silêncio de morte e trevas sepulcrais. Tanto frio. Quase nem falavam um com o outro. Ele tossia constantemente e o rapaz ficava a vê-lo cuspir sangue. Avançavam curvados. Sujos, andrajosos, sem esperança. Ele parava e apoiava-se no carrinho e o rapaz ontinuava a caminhar e depois parava e olhava para trás e ele erguia os olhos lacrimejantes e via-o ali na estrada, estático, a olhá-lo de um futuro inimaginável, a cintilar naquela aridez como um tabernáculo."
Ler e viver esta "Estrada" é um exercício de resistência. O sofrimento que transpira de cada página, de cada passo perdido por entre cinzas daqueles pai e filho, penetra-nos até ao osso, bem fundo, até ao limite da nossa imaginação. O alívio, a existir, é-nos concedido pelo amor incondicional de um pai que morreria mil vezes pelo filho amado. A inocência da criança revela-nos que o mal só atinge quem conhece esse lado negro da existência. Pudéssemos todos viver na inconsciente inocência. Um futuro inimaginável, infelizmente.
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A estrada (pérola 2) - O jogo da memória
"A recordação dela a atravessar o prado em direcção à casa logo de manhãzinha, com um fino vestido cor-de-rosa que se colava aos seios. Ele achava que cada uma das memórias que evocamos certamente violenta as respectivas origens. Como num daqueles jogos que se jogam nas festas. Diz a palavra ao ouvido do seguinte. Por isso, sejamos parcimoniosos. Aquilo que alteramos nas recordações também tem a sua realidade, conhecida ou não."
É nos pequenos pormenores que percebemos estar na presença de um grande escritor. O que Cormac McCarhy nos oferece sobre essa parte significativa das nossas vidas, as recordações que dela guardamos, impõ-se-nos com uma notável clarividência. As intermináveis discussões que temos com os nossos pares sobre determinado episódio do passado, que cada memória selectiva vê distintamente com os diferentes olhos da alma, nunca poderiam ser iguais. Se hoje recordo que aquilo não foi amor mas sim vício, tu poderás revivê-lo como o amor da tua vida. Violação das origens da realidade, diria simplesmente Cormac McCarthy.
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A estrada (pérola 1) - O novo amante e o vento que leva as palavras
"Dantes falávamos sobre a morte, disse. Agora já não. Porquê?
Não sei.
É porque ela está aqui, junto de nós. Já não há nada para dizer.
Eu nunca te deixaria.
Não me interessa. Isso é irrelevante. Podes achar que eu sou uma cabra infiel, se preferires. Arranjei um novo amante, que me dá aquilo que tu não me consegues dar.
A morte não é um amante.
Ah, isso é que é."
A escolha limite para troca de um velho amor é a escolha do vazio, da fuga à vida. Em "A estrada" a razão de opção tão drástica está obviamente relacionada com a catástrofe que se exige que as personagens enfrentem. Contudo, não raras vezes, vidas mais serenas defrontam-se com dilemas menores e escolhem o mesmo caminho, a morte, o atalho sem retorno para o fim do sofrimento. É também esta dualidade e esta atitude nas escolhas que torna a obra de McCarthy tão grandiosa e tão próxima da realidade mundana.
Grandes desafios exigem um recrudescer de forças, despertam no homem energias que se desconheciam. Quem verga perante os grandes desafios fracassará igualmente em face das pequenas agruras da vida. É na atitude perante os obstáculos que se revela a pequenez ou a grandeza das almas. Tudo o resto são palavras vãs.