Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
O deserto dos tártaros (pérola 2) - O sílêncio das muralhas
"As paredes nuas e húmidas, o silêncio, a palidez das luzes: todos ali dentro pareciam ter-se esquecido de que em alguma parte do mundo existiam flores, mulheres risonhas, casas alegres e hospitaleiras. Tudo lá dentro era uma renúncia, mas por quem, por que misterioso bem?"
A renúncia. A capacidade de abdicar. A opção voluntária pelo degredo. Foi essa a entrega do Tenente Drogo, a clausura numa fortaleza perdida no deserto, a espera por um acontecimento que, no seu íntimo, sabia que não iria ocorrer. Monges somos todos nós em algum momento das nossas vidas. Quando só o isolamento nos reconcilia, quando apenas o silêncio nos proporciona a harmonia. Depois, há quem eternize esse momento. Porque o seu mundo é o do isolamento e do silêncio. Porque as paredes do seu quarto serão sempre nuas e húmidas, mergulhadas no silêncio e na palidez das luzes.
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O desterto dos tártaros (pérola 1) - A temível e voraz ampulheta
"Vinte e dois meses tinham passado sem trazer nada de novo, e ele ali ficara parado, à espera, como se a vida devesse ter para com ele uma tolerância especial. Contudo, vinte e dois meses são muito tempo e muitas coisas podem acontecer: dá tempo a que se formem novas famílias, nasçam crianças e comecem até a falar, para que surja uma grande casa onde antes só havia ervas, para que uma mulher bonita envelheça e já ninguém a deseje, para que uma doença, mesmo das mais longas, incube (e entretanto o homem continua a viver despreocupado), consuma lentamente o corpo, se retire durante breves aparências de cura para regressar com maior ímpeto sorvendo as últimas esperanças , resta ainda tempo para que o morto seja sepultado e esquecido, para que o filho seja capaz de rir de novo e à noite acompanhe as raparigas pelas alamedas e, leviano, junto ao gradeamento do cemitério".
O consumo do tempo, o desperdício ou a produtividade com que encaramos esse bem tão precioso, é tratado com pinças por Dino Buzzati no deserto onde os soldados esperam o ataque dos Tártaros. Uma hora pode ser decisiva para toda uma vida mas essa vida não se pode esgotar nesse momento. Dez anos podem não significar nada numa vida, depende do tratamento que dermos aos minutos que se atropelam no nosso futuro próximo. A ampulheta avança sem pedir licença, não espera que a acompanhemos na sua voracidade, tudo depende da nossa percepção do que vale a vida e do que a mesma merece que com ela façamos. A areia que se esvai por entre os dedos está nas nossas mãos. Os dedos são nossos e o que fazemos com a areia que deles se escapa é nossa decisão, só nossa.
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Dino Buzzati e "O Deserto dos Tártaros"
Jornalista e escritor italiano (1906-1972), Dino Buzatti publicou em 1940 a obra que lhe deu fama e que se elevou a obra prima da literatura europeia e mundial. "O Deserto dos Tártaros" é o deserto de um homem, do soldado Giovanni Drogo, encerrado na sua fortaleza, esperando toda uma vida pela batalha que nunca chega, a batalha com os Tártaros. As raízes filosóficas da obra de Buzzati levaram alguns críticos a apelidar o autor de "o Kafka italiano". Ainda assim, se o mundo de Kafka se encerra nas teias da desesperança que tão genialmente tece, na obra de Buzzati apercebe-se uma ténue esperança. O relato da existência inútil de um homem que espera por um momento que nunca sabe se surgirá, é uma poderosa reflexão sobre a inutilidade do poder, a inexorável passagem do tempo, uma meditação dolorosa sobre o cerne da solidão.
Olhando para esta obra com a perspectiva dos dias de hoje, é inevitável não comparar a inutilidade daquela fortaleza perdida numa terra inóspita, o desperdício de vidas a que um Estado destinou Drogo e companheiros de desterro, com aquilo que são hoje os milhões perdidos em submarinos de guerras inexistentes. O afirmar de batalhas contra moinhos de vento será uma característica do estado Nação, será talvez um dos baluartes em que este assenta a sua legitimidade. A ausência de inimigos tira importância e significado às nobres funções estatais, há que vislumbrar no horizonte, no nevoeiro que encobre todo o deserto, a constante ameaça de um inimigo, que, por se desconhecer, é ainda mais assustador e perigoso. O cidadão feito soldado, confrontado com estes inomináveis perigos, entrega-se à solidão em defesa da sua pátria e dos seus. E a fortaleza ergue-a em seu redor. Quanto maior a solidão dos homens e das nações, menor será a possibilidade de soçobrarem aos seus inimigos. Imaginários ou reais.