Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Corona break
Traders wearing face masks are seen on the trading floor at a flower auction trading center following an outbreak of the novel coronavirus in the country, in Kunming, Yunnan province, China. - Fotografia via REUTERS
Porque é que realmente tememos este coronavírus? Pela saúde dos nossos, dos nossos velhos? Acredito que em parte sim, como creio que o medo do desconhecido, a falta de certezas, mexa com a nossa vida medianamente confortável, com a sensação de que guerras mortíferas e epidemias eram, até há pouco tempo, algo longínquo, um fantasma que só nos incomodava um pouco no barulho de fundo dos ecrãs que, monotonamente, acompanham as refeições lá de casa, preenchem os buracos do diálogo familiar estafado e, por isso, tantas vezes substituído por esses ruídos estranhos e distantes, por imagens que nos fazem socorrer do telecomando, para não assustar as criancinhas, para não termos que explicar-lhes aquelas desgraças e crueldades, estranhezas estapafúrdias à luz dos nossos dolentes dias, fenómenos do Entroncamento tão fantasticamente desenquadrados do nosso casulo familiar, escolar, profissional, como uma praga de um universo desconhecido, um filme de série B entregue aos exageros digitais dos modernos efeitos especiais.
Ou será que as nossas preocupações são essencialmente outras? Falo de taxas de crescimento, de incomes, de revenues, de viagens e eventos tragicamente cancelados, de PIB´s que estavam em vias de subir sem parar e agora estagnam nos esporões do filho da mãe do vírus. Falo de empresas preocupadas com quedas abruptas nas exportações, da matéria prima que escasseia porque vem lá dessas terras malditas do Oriente, falo de patrões e governos amofinados porque o filha da puta do vírus lhes veio baralhar os números, os orçamentos, as expectativas económicas. Isto é a vida dos dias de hoje, dirão alguns, o nosso quotidiano, o que nos põe a comidinha na mesa ao jantar e a marmita ao almoço à secretária, enquanto babamos em frente a um écrã imune a vírus. É a vidinha, dizem eles e alguns de nós.
É esta a vida que tememos perder? Aproveitemos para pensar nisso que, enquanto o Corona vai e vem folgam as costas.
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Juizinho é o que nos falta
Um dos maiores dramas da vida moderna é passar pelo tormento de uma máquina de lavar roupa avariada. É a roupa que se acumula, é a garantia que não resolve o problema no imediato, é o canalizador que nunca tem tempo para aparecer, é a roupa a acumular no cesto e a desaparecer das gavetas. Como qualquer tarefa pendente que se eterniza, percebemos que no futuro a coisa só vai piorar, pois a pilha de roupa que cresceu nos dias anteriores irá inapelavelmente distribuir-se pelos cinzentos dias que se avizinham. Sim, há a fome em África e o drama da Venezuela, mas teimamos em ser umas bestas que não sabemos relativizar os nossos dramaszinhos mundanos. Tenhamos juízo.
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Um dia temos que começar a agir seriamente sobre isto
“A Europa cismou tão obcecadamente na economia que deixou deslaçar a política, negando-se à interpretação óbvia de que o crescimento dos partidos extremos e populistas era a metastatização da própria insubordinação popular.”
Pedro Santos Guerreiro
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Estúpida e orgulhosamente sós
A capacidade de nos autoflagelarmos é proporcionalmente inversa à nossa inteligência. Sentimos o cheiro do napalm que se infiltra insidiosamente no alcatrão e deixamo-lo entranhar-se nas nossas roupas, no nosso corpo, nas nossas vidas. Sim, falo dos ingleses, esses orgulhosos e pedantes isolacionistas, esses seres iluminados que se julgam mais que todos os outros e que disseram sim a viver orgulhosamente sós. Serão inúmeros os defeitos desta União Europeia coxa, burocrática, pesada, tantas vezes fria e desumana. Não obstante, a vida e o mundo são feitos desse processo (des)construtivo: identificar o que está mal, desenhar medidas para a mudança, reunir forças e apoios para as implementar e, no final, celebrar a maravilha que é o génio humano e a sua capacidade de caminhar para um mundo melhor. Isto parece ingénuo e utópico mas é mesmo assim, porra. Sobrevivemos à barbárie da idade média, a guerras mundiais, a holocaustos, a pestes negras e bubónicas, à fome e às secas, caímos no buraco negro do medo e do desespero e conseguimos sempre trepar pelas escarpas rochosas até atingirmos a luz, feridos mas realizados. Tudo isso fizemo-lo sempre de mãos dadas, nunca ninguém venceu nada sozinho contra o mundo. Fuck you, Brexit!
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Sinais
Jean-Philippe Charbonnier, "Lovers", Paris 1950s
Não basta um amor e uma cabana mas também não são precisos palácios para passear o amor. Vem isto a propósito do bom e velho ditado “casa onde não há pão toda a gente ralha e ninguém tem razão”. Sim, anda por aí muito boa gente que insiste em desgastar a relação porque a tão propalada crise mingou ainda mais as migalhas que sobravam da refeição, pelo que sem dinheirinho o sorriso esmorece, que é como quem diz “sem mãozinhas não se fazem bolinhos” ou “sem moedinhas não há cá pão para malucos”. Sou rapaz para compreender que um casal, uma família, dois pombinhos a começarem a vida em comum discutam porque o dinheiro falta, porque há opções a ser feitas, cortes com que avançar, luxos ou hábitos a meter na gaveta (não esquecer de esconder a chave, malditas tentações). O problema não é tanto da falta de dinheiro, permitam-me dizer, mas sim de nos termos habituado a viver com comodidades com que já não sabemos não viver (Internet, pacotes de séries e filmes, carripana renovada de poucos em poucos anos, roupinha da moda, móveis de bom design, restaurantes, brunchs, lanchinhos na esplanada, etc. e tal). Depois, há outro problema em paralelo: o que antes era uma aliança para combater os problemas em equipa e um ombro para apoio, é agora visto como fonte de divergências e interesses contraditórios. A família, esse núcleo duro que enfrentava tempestades com um sorriso nos lábios, treme agora ao mais mínimo sopro do lobo mau, como se mais não fosse que um frágil casebre de palha. Não foram os tempos que mudaram, foi a têmpera e a fibra das pessoas e, consequentemente, dos núcleos familiares, que definhou. Devíamos passar a dizer menos “sinais dos tempos” e a perceber que estes são mais “sinais das pessoas”.
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Não somos todos gregos, somos todos loucos!
Valerá a pena continuar a escrever e a perorar sobre a situação na Grécia? Não será o momento de parar para pensar? Não será loucura acrescentar mais loucura à completa insanidade do que os media nos vão oferecendo todos os dias? Bem mais importante do que opinar é ouvir quem sabe, é separar o trigo do joio, é encontrar a agulha da verdade cristalina por entre o palheiro da gritaria da turba. O Pedro Santos Guerreiro, fazendo jus ao nome, tem lutado incessantemente por chamar os bois pelos nomes neste chiqueiro em que se tornou a Europa. Deixo mais abaixo umas assustadoras pérolas de um excelente artigo que podem ler aqui.
“A União Europeia foi longe de mais na violência estéril e vingativa. Para destruir o Syriza está a ceifar-se um povo.”
“Repito: a Grécia vai ter uma recessão pior do que a que os Estados Unidos viveram na Grande Depressão de 1929. Repito: o plano económico vai falhar porque foi concebido para falhar. Repito: desistimos dos gregos e resistimos a ver o desastre encomendado.”
“Mas a Alemanha quis tanto destruir o Syriza, por vingança e por dissuasão a que outros países elejam partidos radicais, que perdeu a noção da força. Mais um pacote recessivo vai destruir mais economia e mais emprego numa economia já exangue.”
“Tsipras, o temível mastim indomável, está amestrado como um caniche. Dá dó. A direita rejubila. Também dá dó. Porque ninguém para, escuta e olha para perceber na loucura que estamos a patrocinar.”
“Percebe-se a pulsão de obrigar o país a adotar as reformas estruturais nunca adotadas, incluindo a de ter um Estado que funcione e que cobre impostos. Mas não é destruindo o espaço político e aniquilando a economia que tal vai ser conseguido. A violência na Praça Syntagma é desenrolada por grupos anarcas ruidosos mas pouco representativos. A miséria que se alastra, não: é de todos.”
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Entre a nobre arte da sedução e as dúvidas helénicas - algures por aí estará a resposta
Ontem, uma colega minha que sempre tive por relativamente discreta, séria, e pouco dada a manifestações públicas de preferências amorosas, rasgou as vestes do seu estado de respeitosa quarentona divorciada e declarou, a mim e a outra colega, a sua mais recente paixão, bem espelhada no êxtase com que todas as manhãs acompanha as mais recentes manobras de sedução internacional de Yanis Varoufakis, o novel e nada politicamente correcto ministro das Finanças grego. Ainda recupero do momento em que o rubor invadiu a face desta vítima da loucura à primeira vista e proclamou: “Por mim pagava os impostos que ele quisesse, onde ele quisesse, na posição que ele quisesse”. Especialista na oculta ciência económica da “teoria dos jogos”, ofício que na minha ignorância associo à arte de elaborar estratégias complexas que conduzam ao sucesso dos nossos objectivos mais ocultos, esta nova estrela do firmamento político europeu tem sabido ser um sedutor nato. Se primeiro convenceu, juntamente com o primeiro-ministro Alexis Tsipras (outro artista da sedução), os seus eleitores a concederem-lhes o poder em troca do paraíso, do rasgar de incómodos e dispendiosos compromissos que soçobrariam diante das suas eloquentes e brilhantes propostas para toda uma nova forma de fazer girar as envelhecidas e ferrugentas rodas da economia europeia, quiçá mundial, por outro lado, Varoufakis, nessa ronda de visitas aos seus financiadores e parceiros europeus tem sabido recuar convenientemente, naquele jeito de quem recua para ganhar mais balanço. Para dentro um discurso, para fora fala em acabar com o problema endémico de comandar uma Grécia afogada na corrupção e noutros pecados que tais, declarando humildemente que é ministro de um país falido. Se as suas sedutoras teorias encantam alguns, sobretudo aqueles e aquelas que não resistem ao namorico entre a fria e aborrecida realidade dos números e os gestos e as palavras grandiloquentes, haverá que não esquecer que, do outro lado, estão instituições, países e organizações internacionais sustentadas e constituídas por gente eleita pelos chamados partidos moderados do centrão. Será que as recém-empossadas estrelas gregas acreditam realmente que o sucesso de um partido de esquerda radical no governo é um desejo profundo dessas instituições, organizações e partidos? Não percebem que esse sucesso equivaleria aos donos do poder abrirem, de par em par, as portas do poder a esses pequenos partidos radicais? Não perceberam os claros sinais de ontem do BCE? Ou será que essa suposta ingenuidade faz parte do jogo?
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Portugal, a flor e a foice - da emigração lusitana
“De um ponto de vista social, a emigração portuguesa constitui a manifestação de uma forma de escravidão que subsiste ainda hoje. De um ponto de vista ético, a emigração portuguesa significa a negação constante do direito mais elementar da pessoa: o direito à vida no próprio país. De um ponto de vista político, a emigração portuguesa supõe a renúncia à revolta”.
Esta análise de J. Rentes de Carvalho sobre o fenómeno da emigração está naturalmente desatualizada face à realidade atual. Se este movimento persiste nos dias de hoje, se ganhou novo impulso com a merda da crise e respetivas consequências troikianas, o que hoje nos deve preocupar não é apenas a saída das pessoas em si mas, sobretudo, que hoje estejamos a perder aqueles em quem investimos tanto, os melhores, o fruto do esforço que o país fez para formar os nossos filhos. Já não são apenas as mãos que seguram as enxadas ou que cimentam os tijolos que saem do país, são agora também os cérebros, as ideias e a vontade de inovar que nos esvaziam o futuro a cada quilómetro que se afastam, a cada dia que estão longe de nós. São escravos os meus amigos que me deixam mais só e menos rico (de espírito, entenda-se, que essa malta nem uma imperial pagava) neste país cada vez mais envelhecido? Não, não o serão, acho que neste ponto Rentes de Carvalho privilegiou a literatura face à realidade das coisas. Serão eles vítimas da negação do direito elementar a viver no seu país? Em parte sim, porque a busca de melhores condições profissionais que de alguma forma aqui lhes são negadas ou dificultadas os forçaram a procurar novos rumos. E do ponto de vista político, será justo dizer que renunciaram à revolta? Aqui tendo a concordar com o autor, talvez pudessem ter contribuído um pouco mais, insistido mais uns pozinhos para mudar por dentro o país que os forçou a partir. Não é uma crítica, meus amigos, é um apelo para que não desistam da ideia de voltar e de juntos mudarmos esta bandalheira. Um abraço com saudades vossas.
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Um dia os domingos serão ainda mais tristes
Dinheiro, guita, pilim, carcanhol, cascalho, verdinhas, muitas verdinhas, paletes de dinheiro. Em última instância tudo o dinheiro comanda. Se num boteco nos oferecem um pires de tremoços é na esperança que estes puxem por mais uma imperial. As coisas da bola, por mexerem com as paixões mais irracionais que habitam a nossa irracionalidade, brilham como ouro porque há milhões a pagar bilhetes, a comprar camisolas do Messe e do CR7, a contratar um canal pay per view para ver tanta vedeta, todos os jogos, cada vez mais jogos, até que um dia a irracionalidade da paixão e a racionalidade da ganância que se alimentam da magia da bola matam de vez a galinha dos ovos de ouro. Nesse dia não adianta queixarem-se que os domingos seguintes serão efectivamente tristes tristes tristes.
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Das ironias da história
"We are not dealing with a global crisis, but simply with the shift of progress away from the west. Is a potent symbol of this shift not the fact that, recently, many people from Portugal, a country in deep crisis, are returning to Mozambique and Angola, ex-colonies of Portugal, but this time as economic immigrants, not as colonisers?"
Slavoj Žižek