Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Make love, not war - day 3
Para que queremos o amor? O que mudamos na nossa vida quando o encontramos? Cuidamos de o alimentar, de lhe atenuar as dores, de lhe retardar o inevitável definhar? Porque o procurámos em primeiro lugar? Amamos o outro como sempre sonhámos ser amados? O excesso de amor, existe? Existindo, onde nos conduz essa ausência de moderação na nobre arte de amar? Aborrecem-nos, amolecem-nos, os desregramentos do amor? Ou, em sentido contrário, o excesso de amor será o rastilho para o recrudescer da semente do ódio que miserável e irremediavelmente habita o ser humano? Será a guerra uma consequência desses excessos, uma resposta aos instintos selvagens que o amor entorpece e que, hipoteticamente, o seu excesso desperta? Para que queremos o amor?
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Make love, not war - day 1
When the power of love overcomes the love of power the world will know peace.
Jimi Hendrix
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Do mal
As imagens deviam surgir despidas de palavras. Estrangulados pelo incessante ribombar dos mísseis, despojados de nós pelo vazio da destruição devíamos fixar o olhar no horror da guerra. O ódio sem sentido devia calar-nos até ao âmago da dor. Não a nossa dor, a dos que assistem incrédulos e revoltados, por entre séries da Netflix e o bulício do quotidiano, ao terrífico espectáculo da crueldade humana. Falo da dor dos mortos, dos órfãos, dos que ficaram sem passado e sem futuro. Crianças e bebés mortos. Crianças e bebés mortos. Crianças e bebés que sobrevivem e não sabem bem para quê. Quando a fúria do ódio se sobrepõe à força do amor, é o sinal para olharmos fixamente para o fruto do que pode ser a maldade humana. É altura de abdicarmos do conforto e de tomar atitudes. De cessar o mal, de combater a dor. É o momento de não ter medo da mudança, pois ficar onde estamos é aceitar que o mal pode vencer.
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Coluna de fumo - Denis Johnson
A meio do romance “Coluna de fumo”, de Denis Johnson, experiencio as sensações da primeira viagem de um marinheiro de água doce por entre as vagas incomensuráveis de um qualquer mar colérico. Zonzo, avanço receoso por entre páginas pontuadas por guinadas e desvarios. Uma selva de personagens perdidas e alucinadas que se multiplicam numa história que avança aos solavancos e sem aparente fio condutor. O assassinato de Kennedy, as vergonhas e desgraças da guerra do Vietname e de outras confusões americanas entre 1963 e 1970, o brutal impacto do nonsense de enviar os filhos da nação para um cruel destino, o estraçalhar do futuro, de famílias, a hipoteca insanável da saúde mental de toda uma geração. As personagens espelham na perfeição a demência parida de uma guerra idiota, os diálogos inconsequentes e as ações alienadas aproximam-nos do que provavelmente será o estado de espírito dos fantasmas que habitam os tempos de uma guerra.
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Brothers in arms
These mist covered mountains
Are a home now for me
But my home is the lowlands
And always will be
Someday you'll return to
Your valleys and your farms
And you'll no longer burn to be
Brothers in arms
Through these fields of destruction
Baptisms of fire
I've witnessed your suffering
As the battle raged higher
And though they did hurt me so bad
In the fear and alarm
You did not desert me
My brothers in arms
There's so many different worlds
So many different suns
And we have just one world
But we live in different ones
Now the sun's gone to hell and
The moon's riding high
Let me bid you farewell
Every man has to die
But it's written in the starlight
And every line in your palm
We are fools to make war
On our brothers in arms
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A nova arte
Dizia-me no outro dia um amigo, acerca de uma desgraça qualquer, de mais uma qualquer guerra, ou chacina, ou perseguição religiosa, que o ser humano se adapta a tudo. Hoje deparei-me com estas duas fotografias de Hosam Katan, fotojornalista nascido em 1994, em Alleppo, e pensei que nenhuma criança, nenhum ser humano deveria ter que se adaptar a brincar nos escombros do seu passado, nas ruínas da sua vida, ninguém deveria ser obrigado a sobreviver, muito menos com um sorriso nos lábios (porque teve que se adaptar à sua nova realidade, lá está) por entre o sangue dos seus. As fotografias foram tiradas em 2014 na terra mãe de Hosam e não duvido que ele não tenha tido alternativa que não fosse adaptar-se, a ferro e fogo, à sua nova realidade: transformar em arte a vida de merda que alguns homens e dirigentes políticos instituíram como a nova arte de um mundo moderno.
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A interminável batalha está dentro de nós
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Dias desgraçados
O melhor cronista português, Ferreira Fernandes, a escrever sobre o quão injusto pode ser o mundo e maus os homens. Sobre Trump e os dias desgraçados que escolhemos viver. Tão belo e tão triste.
“Um dia, vi um homem parar um carro pobre, numa estrada de terra vermelha, à entrada de uma ponte. Sobre um pilar estava uma bacia de esmalte rachado e nela laranjas pequenas. "Quanto?", perguntou o homem com uma camisa modesta. O miúdo negro disse: "Dois angolares." Sem outra palavra, o homem abriu a mala do carro. O miúdo fez rolar as laranjas na mala. O homem pôs na palma da mão estendida uma moeda de cinco tostões, um quarto do preço pedido. O miúdo nem esboçou um protesto, ficou na berma a ver o carro partir e a sentir a poeira assentar.
Um dia, li um camponês russo a falar com um dos irmão Karamazov. Tudo no camponês era subserviência. E tinha o filho ao lado. O Karamazov não bateu, esmurrou ou pontapeou o camponês - gestos brutos que poderiam ter passado por luta violenta. Esbofeteou-o, com pancada seca e calma, de quem sabe que nunca teria reação. Nada doeu mais do que o filho ao lado.
Um dia, na ala militar do aeroporto de Bogotá, estive na conferência de imprensa dada pelo embaixador americano. Ele falou sobre a luta contra os narcotraficantes e a esperança de apanhar em breve Pablo Escobar, o capo de Medellín. Depois, o embaixador disse que tinha mais declarações a fazer mas essas eram para os americanos e os da imprensa estrangeira. Os jornalistas colombianos saíram, cabisbaixos, expulsos em sua casa.
Um dia, entrevistei um líder guerrilheiro, num jango, enorme cubata circular. O líder esperava--me ao fundo, e as paredes do jango estavam cheias de dirigentes guerrilheiros e conselheiros do líder. Ao entrar, reparei, nunca soube porquê, num jovem de barba escassa e casacão escuro (era cacimbo, inverno austral), sentado à entrada. Finda a entrevista, o líder acompanhou-me à entrada, braço sobre o meu ombro. De repente, fez-me rodar e encontrei-me frente ao jovem de casacão, já de pé. "O senhor jornalista sabe quem é?", perguntou o líder. Adivinhei mas disse que não. "É o Wilson que vocês em Lisboa dizem que matei. Não o quer entrevistar?", disse o líder, e logo apareceram dois microfones. "Não entrevisto presos", disse eu. O jovem tinha os olhos mortos e foi mesmo morto, semanas depois, ele e a família.
Um dia, eu ia de elétrico e vinham duas peixeiras da Ribeira. Elas eram cabo-verdianas e falavam crioulo entre elas. Ao passar pelo Rato (os elétricos ainda por lá passavam), um passageiro endoidou de ódio e pôs-se a mandar as mulheres "para a terra delas." Havia lugares vagos mas elas não tinham ousado sentar-se por causa do cheiro das saias largas. Os insultos do homem apanhou--as com português curto e calaram qualquer resposta. Pousaram os olhos no trabalho, nas canastras deitadas no chão. Nem pareceu terem dado conta dos pescoços que não se viraram. Mas deram.
Um dia, eu estava com um militar, que então era do meu lado, a dizer a uma pessoa detida, porque do outro lado, que sim, podia pedir ao soldado de plantão para ir comprar cigarros à messe. Regressado o soldado, o preso deu--se conta de que, afinal, também não tinha fósforos: seria que lhe podiam acender o cigarro? "Ah, era para fumar? Isso, na cela, não pode", ouvi o "meu" militar a dizer, gozando com o detido confuso.
Um dia, era noite de verão, eu ouvia um homem a assobiar numa esplanada. Ele estava sozinho à mesa e bebia cerveja. Assobiava mambos e boleros, as janelas abriam-se e às varandas assomavam suspiros. Ele sabia e gostava do seu sucesso, na sua rua, mas fazia de conta que não o via. No fim de um bolero de Lucho Gatica, ele ia aclarar a garganta com um gole mas o copo voou até ao chão da esplanada. A mulher do homem do assobio estava com uma mão à cintura e a outra a apontar a casa: ala! Ela nunca produziu outro som, senão o copo a estilhaçar-se. Sempre calada, com o silêncio da autoridade que nunca conheceu resposta. Ele ia à frente dela, cabeça enfiada nos ombros, olhando o passeio, indiferente à rua e à humilhação. Mas não estava.
Um dia, um guarda-costas que me acompanhava em Argel, perguntou-me se eu sabia o que era uma bûche de Natal. Disse-lhe que sim. Era o bolo em forma de tronco de árvore que os franceses comem no fim do ano (como o nosso bolo-rei). Por essa altura, os terroristas islâmicos punham bombas por toda a Argélia e degolavam os ímpios que se expunham. O meu guarda-costas era bom muçulmano, mas tinha saudades da bûche, da infância com vizinhos franceses. No Natal passado tinha sabido de uma padaria que as vendia às escondidas. Foi lá, saiu pela porta de trás mas julgou adivinhar olhares ameaçadores. Abriu a camisa e escondeu o bolo, coseu-se às paredes e apressou o passo. Entrou em casa e tirou o bolo amassado, o chocolate já delambido - os filhos e a mulher olhavam-no, e ele chorou, derrotado. O meu guarda-costas era tropa de elite.
Um dia, depois desses dias que me formaram, hoje, eu dei--me conta de que um homem que varreu os adversários do seu partido amesquinhando-os, que apoucou deficientes, que rebaixou o heroísmo autêntico na guerra de um correligionário seu (ele, que para fugir dessa mesma guerra pretextou doenças que não tinha), que se me apresentou, em palcos públicos, sem compaixão por pais que perderam o filho, que achincalhou as doenças, verdadeiras ou inventadas por ele, da adversária, que levou a humilhação como a arma principal da luta política, um dia, dizia eu, vou ver esse homem a tomar o poder mais poderoso do mundo. Contra ele recuso-me, neste dia, a discutir as ideias dele, políticas, económicas ou ecológicas. A partir de amanhã, certamente. Hoje, tenho a dizer, tão-só, que é um dia desgraçado.”
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Síria
Não resistir à dor alheia e deixar as lágrimas ferir-nos a pele. Mais fundo, sentir a dor alheia dentro de nós, soçobrar e permitir que ela tome conta do que sentimos. Sentir que aqueles dois corpos sob a terra são pais do nosso filho que jaz entre eles. Não dorme, não mais dormirá, jaz apenas, inerte para a vida mas vivo. Só queres chocar, diz-me alguém, é desnecessário mostrar desta forma atroz a violência e as suas consequências. Chocar. Chorar. Fazê-lo incessantemente. Até que a acção brote da dor e das lágrimas. Agir.
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Os cus de Judas (e as nádegas fofas das criadas)
A tropa há-de torná-lo um homem, os homens que o antecederam e foram à tropa nunca deixarão de ser miúdos traquinas, as mulheres desses homens fingem que o mundo é perfeito e que esses a quem chamam seus homens não são a encarnação de pequenos e eternos diabretes. Lobo Antunes entremeia por entre frases complexas e reflexões tantas vezes demasiado profundas um humor de filigrana, que se descobre nas palavras dançantes e nos retratos pintados a lápis de cores da infância, como se hesitasse entre a maturidade inatacável e a tentação pela rebeldia juvenil. Não sei se tal será propositado – pretendendo o autor tudo abarcar, tudo ser, nada deixar por explorar – ou se Lobo Antunes não será mesmo tudo isso, um furacão de maturidades e ingenuidades, um turbilhão de sentenças circunspectas e de gargalhadas alarves. Tudo isto é Lobo Antunes, tudo isto atrai e afasta os que o adoram e odeiam, tudo isto é a cola que une os cacos de um escritor genial e – muito por esse excesso de genialidade – inacessível.