Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Devolvam-lhes os joelhos esfolados
Hoje a escola do mais novo promoveu uma visita virtual, em direto, ao jardim zoológico. Não foi fácil esconder a emoção pela alegria do rapaz, como se estivesse a viver a experiência ao vivo. Também não foi fácil conter no peito a raiva por esta puta desta pandemia lhe ter tirado as sensações reais, o cheiro dos animais, a proximidade, os gritinhos de excitação em pleno jardim zoológico. Somos dos países que mais fechou as crianças em casa, na prisão das aulas virtuais, para proteger a sociedade (???), como se os decisores tivessem esquecido as conhecidas e vincadas fragilidades do nosso sistema educativo. Salvámos o Natal e tramámos o futuro próximo dos nossos filhos, esperemos que não irremediavelmente. Os senhores da razão e das leis defendem-se com o factor imprevisibilidade, esquecendo por completo tudo o que podia ter sido previsto e antecipadamente combatido com planeamento. Gere-se ao dia e em cima do joelho, porque, alegadamente, o vírus é imprevisível. As filas de dezenas de ambulâncias à porta dos hospitais desapareceram uns dias depois, quando alguma alma iluminada se lembrou de fazer a triagem dos doentes que vinham nas ambulâncias dentro das próprias ambulâncias, evitando as filas de luzes e sirenes de espera para se entrar na triagem do hospital. É tudo tão poucochinho, meu Portugal, as nossas crianças mereciam tão mais dos senhores que os seus paiszinhos sentaram nos vetustos cadeirões das decisões.
Quando isto acabar lembrem-se de devolver aos vossos filhos tudo o que lhes foi tirado. Correrem na rua, caírem na calçada e na relva, pegarem em tudo o que são paus e pedras, esfolarem os joelhos sem dó nem piedade, chutarem a bola sem parar, rirem que nem loucos alucinados na sua inexplicável felicidade. Quando isto acabar amem os vossos filhos e dêem-lhes não menos do que eles merecem, devolvam-lhes esta parcela de infância que lhes foi roubada. Vejam lá isso.
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Strange days
Arte por Flavio Greco Paglia
O que ontem tomámos como garantido e que assim vinha sendo há anos pulverizou-se em escassas e distópicas semanas. Um vírus microscópico, uma ameaça invisível que torna visível a fragilidade humana, a infantilidade das certezas, a nossa incapacidade de adaptação. Os líderes mundiais que julgámos medianamente imbecis mas, ainda assim, foda-se, ainda assim, acreditávamos terem uma pinga de bom senso ou, pelo menos, a inteligência de se rodearem de conselheiros sábios, assumiram toda a imbecilidade megalómana que julgáramos impossível de atingir. Amigos normais que aprendemos a admirar sucumbem ao pânico e transformam-se, por artes de feitiçaria, em débeis imitações de adolescentes borbulhentos e geneticamente imaturos. Já ninguém se lembra porque tem a dispensa repleta de rolos de papel higiénico, há quem pague pequenas e patéticas fortunas por máscaras fashion. Uma amiga que admirava pela calma e sensatez dispara nas redes sociais, ganha garras e garra e ataca os confinados desesperados “Gajos casados que andam ao engate, só prova o quão cobardes são. Preferem a segurança aparente de uma relação falhada e depois tentam comer por fora. Não quero julgar ninguém, cada um faz o que quer, mas pelo menos aguentem quando levam negas, ok?”. Assomos de louca coragem (se é bom ou mau, não serei eu a julgar) confundidos por entre reações de pânico, como a de um conhecido bem posicionado nas hierarquias do poder que enviou uma mensagem de whatsapp, para as suas centenas de contactos, alertando, um dia antes da declaração do estado de emergência, para que todos fossem a correr aos supermercados e farmácias, porque ia tudo esgotar, íamos ficar meses sem poder sair, salvem-se e salvem os vossos, gritava ele, desesperado, marimbando-se para todos os outros, pobres mortais, que não tiveram acesso a essa informação privilegiada.
“O mundo não será destruído por aqueles que fazem o mal, mas por aqueles que assistem sem nada fazer”, publica uma amiga, atribuindo a sábia frase ao grande Einstein, só não sei se ela vai fazer algo com essa grandiloquente mensagem ou se vai apenas sorrir, com o ego afagado por si própria e pela sua incrível capacidade de espalhar sabedoria. Olho para os meus filhos, saudosos dos amigos e da escola, mas a saber disfrutar desta nova proximidade familiar, ainda que forçada, e pergunto-me quem serão os génios que querem devolver as crianças ao seu mundo, restituindo-lhes algum normal, com regras que apenas lhes ensinarão o caminho da desumanização. Não sou o Albert, mas sou rapaz para dizer que o futuro somos nós que o construímos e que o medo não é bom conselheiro para os dias que hão-de vir. Vejam lá isso.
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Já era bem porreiro, se assim fosse
"Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre. "
Adaptando esta feliz afirmação do José Eduardo Agualusa à época natalícia, diria que só as crianças verdadeiramente habitam a magia do Natal, só elas sentem esse feitiço indefinido que, ainda assim, nos toca a boa parte de nós, ainda que sem a maravilhosa inocência com que a vivem as nossas crianças. Não tenho votos natalícios, não vou sugerir rumos e estados de espírito, muito menos terei a pretensão de vos aconselhar paz e amor nesta época em que a fraternidade parece querer espreitar para fora da toca onde se esconde boa parte do ano. Se nos deixarmos ir na onda das crianças e sentirmos e dermos um pouco mais de amor do que nos restantes dias do ano, epá, isso já é bem porreiro. Feliz Natal, minhas queridas e meus queridos amigos.
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O primeiro beijo
Fotografia por Stephen Shames, "Bike Jump", da série "Outside the Dream Child Poverty in America, 1985"
Terá havido um momento no tempo, no desenvolvimento da sociedade e das relações humanas, em que se deu o clique. Alguém, uma qualquer besta quadrada e insensível, decidiu espalhar a boa nova de que a ordem social aconselhava seriedade e tino, padrões lineares e facilmente repetíveis que matassem à nascença as mais ínfimas possibilidades de maluqueira, como que uma nuvem carregadinha de abúlicos enfados imbuída da nobre missão de silenciar gargalhadas, de sufocar desbragadas gargantas.
Há quem se admire com a existência de sorrisos e esgares de felicidade por entre bairros de tijolos envelhecidos, nas faces de crianças sujas e timidamente alimentadas. Há quem estranhe o mistério de os ricos e afamados demasiadas vezes meterem uma bala na cornatura, como se a joie de vivre fosse proporcional ao volume do livro de cheques. Como se chutar uma remendada bola no meio de um lamaçal, rodeados de amigos, não inspirasse mais felicidade do que uma ceia inimitável num qualquer chateau desses paraísos exclusivos tão invejados. Como se o primeiro beijo e a queca de estreia, mal amanhada mas inesquecível, não dessem uma abada à última visita à casa de mademoiselles de pele lustrosa e seios aperfeiçoados, daquelas que levam os olhos da cara por meia hora de luxúria artificial. A puta da vida devia ser tão simples. Vejam lá isso.
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Formiguinha, formiguinha...é isto que buscas para a tua vida?
O Bolas não morreu, o Bolas nunca morrerá, pois viverá sempre nos nossos corações. Adoro clichés bacocos, não tanto quando adoro que me digam que têm saudades do Bolas. Sim, a puta da falta de tempo, sim, o trabalho perdido por entre urgências várias, sufocado por entre a voracidade das necessidades que se multiplicam como parasitas incómodos nos cabelos do meu desgraçado filho, contaminado por crianças a quem os pais não tiveram tempo de aplicar o shampoo anti-piolhos, porque a voracidade dos seus dias não lhes permite aquela meia hora de pausa em que o shampoo faz o seu mortífero trabalho. Corremos incessantemente, dedilhamos e-mails nervosos e repletos de gralhas, a perfeição já foi, hoje é a velocidade que conta, a sede de dados e inputs, reportes e pontos de situação, todo esse emaranhado de dados desconexos que nunca alcançarão o estatuto de informação hão-de satisfazer alguém, uma eminência impecavelmente engravatada na sua torre de marfim onde o sexo dos anjos não se discute, alguém que pensará que o seu dia foi imensamente produtivo, mesmo que nada de digno seja produzido pelas suas formiguinhas hiperativas. A imagem que encima este post de saudades dos tempos em que o Bolas de quando em vez tinha tempo para respirar é da cidade de Norilsk, na Rússia, fundada em 1935 como um gulag, situada a cerca de 240 km a norte do círculo polar ártico. O tempo parado, a doce indolência das crianças. Pergunto-me se as crianças terão de emigrar para Norilsk para terem tempo de ser crianças. É isto que queremos para nós e para os nossos filhos?
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O Verão é...
…regressar à infância nos mergulhos dos nossos filhos. Beber-lhes o deslumbre, a felicidade simples e indestrutível que reluz na areia que lhes beija os corpos, desejar que o verão de criança se eternize para além da visita fugaz da espuma das ondas.
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10 anos do pequeno Miguel
A voracidade com que o tempo por nós passa adiou por alguns dias o já tradicional texto sobre mais um aniversário do meu primogénito. Há quem diga que passa muito rápido a infância, que aproveitamos pouco esta fase maravilhosa da existência. Discordo. Esta aventura que se iniciou há 10 anos sinto-a como parte de mim desde sempre. Os sorrisos, as descobertas, os momentos de pura felicidade, já não me recordo nitidamente do que era a vida sem esta partilha que me insufla o coração até ao limite. As fitas, os choros, as desilusões ainda tão pueris, a luta constante contra os descaminhos das frustrações que ainda não domina, a cada ocorrência revejo-me nelas, na infância que também vivi. Não é sem um lamento interior que me olho ao espelho da minha incapacidade de lhe explicar que é isso que o fará crescer e dele fará um homem, que só assim as alegrias serão efetivamente valorizadas e saboreadas. O amor por um filho não se explica, dizem também, mas creio que a genuinidade desse amor se reforça a cada dia, com a crescente compreensão pelos pais que, sobretudo na fase da “dependência” de nós, a sua felicidade é em boa parte resultado do amor que lhes damos, das experiências que lhes proporcionamos, da forma como os sabemos entender na sua essência sem pretendermos ajustá-los à nossa visão do que deveriam ser. Amo-te, Miquinhas, venham mais 10!
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A busca incessante
Chuva. Pesada e insistente. O frio que regressa. Os dois putos no carro a caminho da escola, ainda ensonados, como que sonâmbulos a caminho de um qualquer cadafalso. O barulho da chuva, o trânsito, o céu cinzento escuro. O Francisco, 6 aninhos, parece, lentamente, despertar do seu torpor:
- Pai, porque é que existimos?
A meio das reviengas na rotunda do relógio, mais concentrado em não estragar a chapa do que em atingir a profundidade do Francisquinho, levo uns bons 20 segundos para responder:
- Há quem diga que foi Deus que criou o mundo e os homens, Francisco.
O Miguel, 9 anos e mais dado às filosofias terrenas, contrapõe:
- Não não, foi o big bang!
O Francisco, eternamente insatisfeito com as explicações para os porquês da vida, clarifica:
- Não é como é que existimos, é porque é que existimos?
Mau…mais 20, 30 segundos, e tento uma escapatória:
- Se calhar existimos para ser felizes e ajudar outras pessoas de quem gostamos a ser felizes, Francisco. O que achas?
- Sim, talvez pai!
Desta vez é o Miguel que fica insatisfeito:
- Hum, não sei pai, não sei se é bem por isso.
Antes de fechar o debate teológico com mais uma música do Agir que os traga de volta à simplicidade da música simples, fecho a questão deixando-a em aberto:
- Não penses muito nisso, Miguel, boa parte das pessoas morrem sem descobrir a resposta a essa questão. E olha, muitas morrem felizes, mesmo sem o ter descoberto a tempo.
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O carrossel
Gira que gira e volta a girar.
Creio que esta era uma lengalenga entoada nos idos da infância, provavelmente a acompanhar a dança do pião de madeira, embalado pela corda suja e coçada dos nossos sonhos. Éramos felizes como jamais o voltámos a ser e pouco interessa se o sabíamos ou não, pensar nisso era um absurdo visto aos olhos de crianças sorridentes e de joelhos esfolados, era uma perda de tempo, apenas mais uma parvoíce aborrecida do mundo dos adultos. A lenta valsa do pião, naqueles vagarosos segundos que antecipavam a sua inevitável queda por terra, era um vislumbre nebuloso da tristeza que ainda não conhecíamos. Arrumávamos o pião no bolso do fato de treino e rumávamos aos casulos onde a alcatifa já não cheirava a relva, onde os joelhos já não se esfolavam no mar de risos dos nossos amigos. Vinha o banho e a pele enjoativamente cheirosa, o jantar invariavelmente a contragosto, os trabalhos de casa sem necessidade de qualificativos, os traumáticos deveres que diziam ser as ferramentas do nosso futuro, daquele futuro que hoje conhecemos e que sabe a saudade e a desperdício.
O carrossel de ontem, de corridas sem fim, saltos e gargalhadas, é hoje o passo esbaforido e exausto para impedir que mais uma porta do autocarro se feche nas trombas dos nossos sonhos. Os saudosos gritos estridentes de alegria pura e descontrolada são hoje as buzinas irritadas e chorosas que temperam o túnel de alcatrão gasto e de prédios tristes, a rua dos nossos pesadelos.
Não, a vida não é assim tão triste quando abandonamos a criança que fomos. Não é? Será que a vivemos com uma réstia do brilho da nossa infância? Será que percebemos que é aí que estará a nossa salvação, o Santo Graal da felicidade? Vejam lá isso.
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O cheiro da liberdade
Fotografia por Peter Brüchmann, Berlim, 1956
São demasiadas vezes difusas as nossas memórias de infância, bem mais do que a clareza com que recordamos as pepitas de pura felicidade então vividas. O que não se esfumou em forma de marcas de alegria em brasa que ainda hoje me queimam a pele foi o espaço, a liberdade, a rua, a descoberta, o cheiro a terra molhada, o suor de felicidade nos dias de calor abrasador. As brincadeiras em casa, os primeiros encantamentos com o ZX Spectrum tiveram o seu espaço, mas não encaixam nesse baú de memórias inesquecíveis. Mandem os vossos filhos para a rua, vão com eles se tiver que ser, mas deixem-nos sentir a liberdade de horizontes sem fim, permitam que o estimulante suor frio do desconhecido lhes aqueça a alma, não lhes castiguem os joelhos esfolados na gravilha e os calções beijados pelo verde sujo e libertador da relva molhada. Lembrem-se do que realmente vos fazia felizes. Vejam lá isso.