Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Coluna de fumo - Denis Johnson
A meio do romance “Coluna de fumo”, de Denis Johnson, experiencio as sensações da primeira viagem de um marinheiro de água doce por entre as vagas incomensuráveis de um qualquer mar colérico. Zonzo, avanço receoso por entre páginas pontuadas por guinadas e desvarios. Uma selva de personagens perdidas e alucinadas que se multiplicam numa história que avança aos solavancos e sem aparente fio condutor. O assassinato de Kennedy, as vergonhas e desgraças da guerra do Vietname e de outras confusões americanas entre 1963 e 1970, o brutal impacto do nonsense de enviar os filhos da nação para um cruel destino, o estraçalhar do futuro, de famílias, a hipoteca insanável da saúde mental de toda uma geração. As personagens espelham na perfeição a demência parida de uma guerra idiota, os diálogos inconsequentes e as ações alienadas aproximam-nos do que provavelmente será o estado de espírito dos fantasmas que habitam os tempos de uma guerra.
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Perdido nas imperfeitas páginas da absurda busca do seu contrário
Creio que tal nunca me aconteceu, no que ao meu comportamento de leitor respeita, mas dou por mim a saltitar ávida e indecisamente entre diversos livros. Não sei se tal se explicará pela falta de tempo para me focar num só, pela tentativa de não me deixar abater pela monotonia de estilos literários, pelo instintivo desafio de estimular as meninges e a capacidade de concentração. Há algum tempo para acabar “Os cus de Judas” de Lobo Antunes, vou entranhando as suas inimitáveis pérolas na exata medida em que me irrito com aquela constante busca da perfeição linguística. Esse esforço que não passa das 10 páginas por tentativa entrelaça-se num interessante ensaio histórico de Marc Ferro, um périplo pela crónica incapacidade dos povos e dos seus líderes em compreender os comos e os porquês dos momentos históricos, constrangendo-os a, desprovidos de tal conhecimento, verem frustrada a sua capacidade de desviar o presente de negros futuros (“A cegueira – uma outra história do nosso mundo”). Para não me facilitar a vida meteu-se-me na pilha dos livros em processo de leitura contínua o bom e velho J. Rentes de Carvalho, primeiro com o “Meças”, mais uma genial caricatura com cheiro a Portugal profundo, logo seguido da “Ira de Deus sobre a Europa”, ainda no início mas com promessas de muita sabedoria pouco politicamente correcta. Desconfio que o problema destes excessos e confusões literárias reside na eterna busca do livro perfeito, aquele que nos preencherá e nos entregará a lamparina da infinita sabedoria. Haverá disso? Não deveria eu já saber que todo o livro, toda a obra de arte é o espelho da nossa imperfeição?
Nem por acaso, regresso ao maravilhoso blog de Rentes de Carvalho (Tempo contado) e descubro que o próprio autor, não obstante a sageza da idade e das léguas literárias percorridas, caiu na esparrela da busca da obra que supostamente lhe encheria as medidas. Deliciai-vos com a descoberta:
“Lá caí pela enésima vez na ratoeira dos ditirambos, dos louros, das hipérboles, e talvez também, por que não confessá-lo, para ver se ali finalmente aprenderia a receita que procuro desde que comecei a escrever ficção.
Ao folheá-lo na livraria já me corria água na boca: “Um livro de sonho”; “Um livro sofisticado, urticante, dramático”; “o autor tem um olfacto indiscutível para captar aquilo a que os alemães chamam zeitgeist; “nunca ninguém foi tão longe na representação do real”; “é um autor de génio.”
Nas quase trezentas páginas há um pouco de tudo, não vá o leitor sentir-se lesado por não ver lá a sua tara, o seu vício, a sua estupidez, os seus sonhos de adolescente débil mental, a pedofilia do cinquentão, o exotismo nipónico, os problemas do camembert, o gosto da vodca, a comparação das qualidades da espingarda Swarovski DS5 com as da Steyr Mannlicher, o que sente ou não depois de engolir certas drogas, e também ainda os problemas muito actuais do aluguer de apartamentos. Só? Acha pouco? Claro que seria pouco, mas logo depois e à mistura vêm as orgias chiques em casas de sonho, onde esplêndidas e esplendorosas mulheres sempre ricas, sempre jovens e num cio eterno, copulam com mastins, corpulentos bulldogs ejaculam na garganta das ditas, enquanto em redor é um não findar de enrabanços, o todo embrulhado em aflições psíquicas, idas ao supermercado, ao psiquiatra, longos passeios em bosques, a problemática da criação de vacas…
O estilo, a construção, o vocabulário, o propósito, não desmereceriam de um adolescente transtornado, mas é erro meu, talvez até uma ponta de inveja, porque o autor continua a ser “um valor seguro, porventura um dos pouquíssimos representantes daquilo a que outrora chamávamos literatura”.
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Desgraça
Ligeiramente perdido nos pensamentos, enquanto faço tempo para que resolvam mais um bug informático dos tempos modernos descubro, por entre dossiers antigos de reuniões vetustas, um dos livros que mais me perturbou nesta já longa carreira de leitor, hoje tão tristemente adormecida. Folheio as páginas e encontro assinaladas as passagens de um diálogo brilhante, machista, misógino e despudoradamente belo como só a literatura o sabe ser, em todas as suas contradições e intermináveis sentidos. Um livro pode causar-nos repulsa e tornar-se inesquecível, um autor pode ser um filho da puta e um (in)questionável génio.
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Do corpo e do espírito
Um bom amigo, mais dado aos prazeres dos sentidos do que aos do espírito, pediu-me um dia, a meio de uma batalha de imperiais, para que na sua lápide ficasse escrito o seguinte epitáfio: “Foram mais as que quis dar do que as que dei”. Quando me ri do seu pedido, ele irou-se e fez-me prometer, sobre a espuma derramada de uma mesa cheia de imperiais, que cumpriria o seu último desejo. Ainda hoje não sei o porquê dessa estranha vontade. Talvez rir-se na cara do mundo, talvez uma amargura animalesca que lhe feria a alma e que necessitava de expurgar, talvez um aviso para o mundo, para a felicidade futura dos seus entes queridos que o visitariam no aniversário da sua morte.
Eu, que não desprezando os deleites do corpo me apego bastante aos prazeres do espírito, deixaria inscrito na minha lápide: “Foram mais os que quis ler do que os que li”. Com pena minha, será essa uma das tristezas que legarei a esta vida. Leiam isto e pensem nisso. E leiam.
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O eterno retorno
Amava despertar nos suaves aromas do café pela manhã, simples e a ferver. Depois disso, a perfeição coincidia com o som surdo das palavras a ecoar dentro de si. Se depois desse momento só seu ele a possuísse como só eles sabiam, o dia, o mês, a vida podia fechar para balanço. Não havia nada a desejar para lá disso. Só o eterno retorno.
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O beija-flor
A garganta estava seca, as palavras evitavam abandonar a fonte estéril. Sentia a imaginação definhar e a inspiração longínqua. Os motivos por que outrora cravava sofregamente os dedos na caneta esfumaram-se nas idas e vindas da vida, nos encontros e desencontros com que o destino teimava em confrontá-lo. Sabia que um dia usaria esses reveses e as memórias já menos dolorosas como o fermento que faria germinar as palavras, mas neste momento sentia que, mais do que motivos para escrever, faltava-lhe vida vivida, intensamente vivida, que lhe trouxesse de volta a sofreguidão de estrangular a caneta. Faltava-lhe alguém para quem escrever, que lhe bebesse as palavras como o beija-flor bebe o néctar das flores, que o forçasse a espremer cada palavra como se fosse a última, como se o suco que jorrasse nas folhas fosse o elixir mágico que lhe devolveria a vida e a paixão de escrever.
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O Bukowski é que a levava direita
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Arranha-céus, por J.G. Ballard
Em tempo de praias a abarrotar, de gente que se digladia para pedir uma imperial num qualquer balcão, nestes estranhos dias em que a canícula enlouquece os habitantes de automóveis que formam filas sem fim, quase que arrisco dizer que este livro poderia ser uma aproximação a uma horrenda realidade futura não tão distante como isso. Os 2.000 habitantes de um arranha-céus auto-suficiente percebem que a constante exposição do homem ao homem, com os seus interesses visceral e propositadamente opostos (ah, a doce atracção da luta por algo) é a melhor forma de proporcionar a aniquilação final do homem pelo homem. Ballard embala-nos nesta fábula do mal, contagiando-nos pela secura e naturalidade com que narra o crescendo do ódio e da banalidade do mesmo. Não queremos acreditar que um futuro próximo nos possa trazer algo semelhante mas olhamos para o passado não tão longínquo e reconhecemos o mal. Apenas o cenário mudou, para um supostamente moderno e aconchegante arranha-céus. Não nos deixemos iludir.
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Obrigado BB, descansa em paz
“Só e apenas a mulher quase faz acreditar, a este velho ateu, na existência de Deus.”
“A História é uma comparação permanente. E aqueles que a não conhecem estão condenados a repeti-la.”
“O meu avô dizia-me para desconfiar sempre dos homens que não bebem e daqueles que andam sempre com ar grave. Segundo ele, os segundos escondem sempre qualquer coisa.”
“Andamos, há muitos anos, a viver de realidades cada vez mais virtuais, sem afeição recíproca, afastadas das pessoas, e criando modos de existir não coincidentes uns com os outros. A ideia de comunidade foi aniquilada, e o conceito de sociedade sofreu um desvio falho de determinações e, por isso, fatal. Que nos resta? Tentar compreender os sinais das novas gerações.”
“O escritor é um ladrão desavergonhado.”
“Não há mortes naturais. Todas as mortes são injustas como uma culpa infundada, e inúteis como uma heresia.”
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Da série mini mini mini contos de encantar