Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
O som do silêncio
Night birds, arte por por Yoshiharu Tsuge
O consolo da noite reside em impercetíveis sensações
sonhos sem memórias de existência
o som dos pássaros cor de breu
silêncio quente como o gelo.
No reverso do espelho a luz do dia
demasiada nitidez
a sufocante ausência de silêncio.
A noite devolve o canto inaudível dos pássaros
melodia dos sonhos
o doce conforto da inexistência.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Gente feita de gente
Elizabeth Taylor a descansar, durante as filmagens de "Suddenly, Last Summer" (Espanha, 1959)
Precisa-se de gente que abra, gentilmente, alas para quem vem da esquerda ou da direita,
gente que não corra
que não salive quando vê o amarelo beijar o calor assassino do vermelho
homens e mulheres que respirem a serenidade de nuvens imperfeitas
de suspiros de algodão em forma de bolas de sabão
nuvens que não sabem se chovem ou se serenamente flutuam
indecisas entre imitar redondas baleias ou tesouros do tamanho do sonho das crianças.
Procura-se gente que não pergunte por razões
almas despidas de porquês
senhoras que não pintem os lábios ou tisnem os olhos,
mulheres com pestanas que se deixem levar p´lo vento sem toques nem retoques.
Anseia-se por homens com simpáticas e sorridentes barrigas
machos sem machezas nem mulherezas
apenas homens que riem alto quando ninguém dorme
e que ressonam quando a noite cai.
Buscam-se crianças de joelhos esfolados
com cheiro de riso e de relva molhada
tristes e felizes petizes de lágrimas embrulhadas em gargalhadas tolas
redondos de tanto chutar bolas
esqueléticos de tanto correr,
como se o mundo e a felicidade de o descobrir fossem uma estrada sem fim.
Precisa-se de gente feita de gente.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Os nomes
“Give your daughters difficult names. give your daughters names that command the full use of tongue. my name makes you want to tell me the truth. my name doesn’t allow me to trust anyone that cannot pronounce it right.” — Warsan Shire
Autoria e outros dados (tags, etc)
E depois do adeus
Fotografia por Ferdinando Scianna
Para onde vai o amor depois de morrer?
Com foi possível deixar de a amar?
Era feita de céu e de mar
tinha em si todos os cheiros da vida.
Da sua voz nasciam os sons da terra
embalados nos sonhos dos seres.
A sua morada era a das deusas
a origem do amor o seu ventre
era ela a mãe de todas as razões que conhecia para existir.
O que há, senão a morte, depois do amor fenecer?
Autoria e outros dados (tags, etc)
O manto de ferro
Durban, África do Sul, 1959, por Ed Vand Der Elsken
O ódio tem a cor do medo
o medo transpira o suor dos cobardes
dos que se cobrem das vestes do poder
sob mantos engomados de vergonha e soberba.
O pecado toca-lhes a vida
traça-lhes o destino.
Nunca entenderão porque na derradeira hora,
perante o precipício sem fim,
só eles e o seu medo habitam a solidão do penhasco
já despidos de ódio e soberba
sós
entregues
para sempre perdidos no medo
de viver a vida sem o manto de ferro do ódio.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O assobio
Berlim, 1957, por René Burri
Pouco mais que sombras pouco menos que gente
seres que levitam na escassez de peso e de existência
batimentos inertes em dúvidas
submersas na certeza da sua trémula opacidade.
O assobio que se escuta nas escadas cinzento metálico
não é o de uma alegria quente
expectável
de quem está vivo
de quem tem a possibilidade de amar
é apenas o vento frio que confronta as brechas envelhecidas
do ferro e das gentes
na esperança vã de que alguém recorde como é assobiar.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O papagaio de asas quebradas
Fotografia de René Burri
Nada há mais triste do que a infância que se esfuma
o adulto que se molda em oposição ao vento
contra a corrente do rio que corre livre e abraçado a sonhos crus.
O papagaio voa agora solitário
não pelo impulso generoso da criança
mas soprado pela indiferença do abandono,
longe da ingenuidade perdida
saudoso dos dedos quentes e felizes que jamais voltará a sentir.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Conselhos para 2018
MAIS POESIA
DEIXAR O SOL ENTRAR
NÃO DAR PÉROLAS A PORCOS
PRIVILEGIAR A LEITURA
Autoria e outros dados (tags, etc)
No palco dos sonhos
- Esta noite sonhei que estávamos numa peça de teatro. Fugimos da realidade e no palco, expostos a tudo e a todos, vivemos finalmente o sonho sempre adiado.
- Sonha meu querido. É para isso que serve a arte.
- Não minha sereia, a arte serve para criarmos o sonho perfeito. É a vida que o realiza, em todas as suas imperfeições.
- És um poeta.
- Diante de ti sou muito mais do que sou.
Autoria e outros dados (tags, etc)
"Caminharemos de olhos deslumbrados", por Ary dos Santos
Caminharemos de olhos deslumbrados
E braços estendidos
E nos lábios incertos levaremos
O gosto a sol e a sangue dos sentidos.
Onde estivermos, há-de estar o vento
Cortado de perfumes e gemidos.
Onde vivermos, há-de ser o templo
Dos nossos jovens dentes devorando
Os frutos proibidos.
No ritual do verão descobriremos
O segredo dos deuses interditos
E marcados na testa exaltaremos
Estátuas de heróis castrados e malditos.
Ó deus do sangue! deus de misericórdia!
Ó deus das virgens loucas
Dos amantes com cio,
Impõe-nos sobre o ventre as tuas mãos de rosas,
Unge os nossos cabelos com o teu desvario!
Desce-nos sobre o corpo como um falus irado,
Fustiga-nos os membros como um látego doido,
Numa chuva de fogo torna-nos sagrados,
Imola-nos os sexos a um arcanjo loiro.
Persegue-nos, estonteia-nos, degola-nos, castiga-nos,
Arranca-nos os olhos, violenta-nos as bocas,
Atapeta de flores a estrada que seguimos
E carrega de aromas a brisa que nos toca.
Nus e ensanguentados dançaremos a glória
Dos nossos esponsais eternos com o estio
E coroados de apupos teremos a vitória
De nos rirmos do mundo num leito vazio.