Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
A Deus
Detalhe de “Extrema Unção”, de Nicolas Poussin
Adeus.
Esta despedida que hoje proferimos demasiadas vezes, tantas vezes com excessiva leveza, nasceu da despedida terminal, da expressão outrora usada pelos padres para recomendar as almas ao cuidado de Deus. “Eu te recomendo a Deus”, outorgavam os curas no leito da morte. Hoje, quando tudo é abreviado, em modo rápido e que não canse a língua, fica o singelo e esquivo adeus, sem sequer ligarmos à importância do que dizemos, ao divino que tudo envolve e justifica. Do outro lado do canal da Mancha também os ingleses esquartejaram o conforto da expressão “God be with you” para um pervertido goodbye, a despedida de quem interrompe uma paint para ir bafejar um cigarro à porta do pub da esquina.
Não obstante, a aparente leveza que este despedaçado adeus assume, contrasta com os nossos receios em dizê-lo, com o confortável peso que carregamos em nós por termos alguém que nos dá vida, alguém que nem sonhamos vir a tocar com o verdadeiro significado desse beijo da morte que é dizer-lhe adeus. É bem provável que este abreviar das palavras derive, mesmo que inconscientemente, da patética tentativa para que essa despedida não assuma as proporções de outrora, que o simples adeus não entregue a pessoa amada nas mãos de Deus. A Deus o que é de Deus, ao homem o singelo adeus.
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Francisco Gómez - Bicycle in the Atrium of a Church in Paris, 1962.
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Roma
Roma, museu a céu aberto, teatro das memórias da civilização, é um paraíso nas mãos de humanos enlouquecidos, essa espécie a quem chamam de turistas. Os romanos, como os parisienses, tresandam arrogância pelo facto de se julgarem superiores por viverem numa das mais belas cidades do mundo. Estão fartos de turistas, desprezam-nos, e não vêm necessidade de os tratar bem para os atrair, pois por um desistente na fila logo a seguir virão milhares de ansiosos candidatos. É de facto triste que os romanos olhem para os visitantes como meras fontes de receita. As indicações para auxílio ao turista são inexistentes (bendita Internet), alguns restaurantes aplicam sem prévio aviso taxas de serviço à vontade do patrão, outros taxistas pretendem cobrar 50 euros de viagem até ao aeroporto quando na porta do táxi têm escrita a tarifa fixa de 30 euros.
Esquecidas as tristezas (r)humanas e o constante enxame de gente em qualquer recanto da cidade, ficam as memórias, as fotografias, a alegria da descoberta de um mundo novo pelos filhotes. Nas imagens que aqui deixo para a posteridade, fica o impactante coliseu, na sua eternidade que perdura há quase 1950 anos, destacando como imagem a guardar um jogo de voleibol disputado às suas portas, em que rapazes de Bogotá (?), talvez de Quito (?) disputavam o jogo mais importante das suas vidas. Sangue, suor, insultos, ameaças, a sede de ganhar em todo o seu esplendor, talvez a sua vingança por não conseguirem vencer na terra mãe e terem que viver à sombra do monstro civilizacional.
O Vaticano, claro, e as gaivotas que nos fixam imóveis, confiantes de que o espírito santo vive em todos nós, como se a maldade nunca nos tivesse tocado. O Vaticano, tanto brilho, tanto ouro, tanto mármore, tanta perfeição, mas a imagem que fica é o contraste das cadeiras velhas e empilhadas que serviram para a glorificação do Papa pelo povo, o povo temente, adorador e mal sentado. Quantos milhares de crianças poderiam ter sobrevivido à fome se os pães tivessem sido transformados em mais pães e não em mais ouro?
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Isto acaba por fazer algum sentido
Não sou pessoa para grandes citações filosóficas e introspecções religioso-espirituais, mas isto que aqui é dito em cima, se pensarmos bem, pode aplicar-se a praticamente todos os problemas da nossa vida. Desde o drama da condição física periclitante do Fábio Coentrão, à catástrofe dos incêndios florestais, passando pelos dramas dos amores e dos desamores, tudo pode ser analisado e intervencionado à luz das três soluções alternativas propostas. Experimentem e vão ver que uma centelha de luz brilhará lá no fundo. Não me agradeçam a mim, acendam uma velinha a quem mais vos aprouver e reflictam, reflictam...
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Coelhinhos e coelhinhas
Ainda me lembro de quando a época Pascal rimava com carestia e penitência, em que se abdicava dos prazeres da carne e se privilegiava refeições em que o peixe mandava na mesa (o que estavam a pensar, seus pecadores?) e se reflectia sobre os pecados cometidos, preparando a alma para a temida presença junto do prior no confessionário. Sim, eram assim os tempos da adolescência e juventude pascal para um jovem nos finais dos anos 80/inícios de 90 que consumia catequese, que não vivia alienado por tablets e por séries televisivas, e para quem o Santo Graal da existência era sinónimo de trepar árvores com os amigos e perseguir uma bola e canelas alheias até ao sol se deitar. Hoje a Páscoa são escapadinhas à neve, viagens para terras onde o sol ofuscou as penitências e reflexões pascais, apenas mais uma pausa na rotina do casa-trabalho / trabalho-casa. Valha-nos a boa e eterna Kate Moss, para nos lembrar que a Páscoa não são só coelhinhos de chocolate mas também coelhinhas de boas carnes e suculentos ossinhos. Fiquemo-nos com a primeira parte do post para refletirmos sobre o que andamos a fazer com as nossas tradições, passando logo a seguir para a descompressão KateMossiana que nos ajuda a aliviar o peso de em permanência buscarmos o sentido da vida.
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Lá longe, ao fundo do túnel
Quando a vida é madrasta para aqueles que amamos tendemos a amaldiçoar o Deus em que acreditamos ou ouvimos dizer que existia. Quando os alvos do esquecimento divino reúnem em si, além do nosso amor, a nossa convicção de que melhores pessoas não existirão à face da terra, desistimos de esconjurar os entes sobrenaturais e simplesmente entregamo-nos à descrença. Alguns, provavelmente os eleitos, procuram acreditar que por detrás de um grande mal se refugia um bem maior, sob o denso nevoeiro de um plano ardilosamente arquitectado. Eu, confesso que me limito a ficar triste, entregue à minha silenciosa impotência quando a minha potência nada pode mudar, e rezo, rezo como não rezo no resto dos meus dias. É uma oração oportunista, reconheço, mas nada peço para mim, só para os outros. Força A., as minhas preces estão contigo.
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Sobre o mau uso da força
Fotografia de Olivier Fitoussi, retratando um protesto em massa de judeus ultra-ortodoxos contra a violação do Sabbath na cidade de Jerusalém
Já aqui falei de um amigo de inteligência bem acima da média que explica as desgraças do mundo com um singelo “a culpa é da religião”. É bem mais simples do que o afamado “a religião é o ópio do povo” e talvez mais direito à questão, pois o que está em causa não é o vício do povo pelo conforto e a dependência provocada pela religião mas sim os males que a defesa cega e intransigente dos cânones religiosos, de qualquer religião, tantas vezes provocam. Não sei se houve algum Deus, guia espiritual ou representante do divino na terra que algum dia tenha postulado que os mandamentos ou os pilares que orientam a crença dessa específica religião inevitavelmente se impõem a tudo o resto, impedindo em absoluto a convivência com outros credos, banindo a tolerância da face da terra e apelando, mesmo que nas entrelinhas de parábolas ou metáforas religiosas, ao ódio, à recusa, à destruição de quem não se revê nesses livros mágicos, nessas lendas imortais, nessas idolatradas escrituras, estórias, crenças, palavras ou tábuas sagradas. A união faz a força, a união de uma facção contra outra faz a força destruidora.
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"A zona de interesse" - Sobre a religião e a falta dela, na incessante busca da génese da escuridão
Voltamos à “Zona de interesse” de Martin Amis, aos crimes do nazismo, ao mal sem explicação. Face aos tempos que vivemos é pertinente explorar a ligação entre a religião e o mal, quer do ponto de vista da guerra das religiões, quer, como no caso em apreço, do ângulo proporcionado pelo conflito entre a religião e a descrença absoluta, e, consequentemente, qual o papel de todos estes antagonismos absurdos na génese do mal. Tenho um amigo invulgarmente inteligente que há anos tece o mesmo singelo comentário na análise dos males do mundo: “A culpa é da religião”. Acrescento eu, se a culpa não é dela é da ausência dela, pelo que, indirectamente, a religião acaba por estar sempre envolvida nas desgraças da humanidade. Diz o povo, na sua infinita sabedoria, “morto por ter cão ou por não ter” (substituam cão por religião e vão ver que chegamos ao mesmo sítio).
Caracas, Venezuela, 2006, fotografia por Christopher Anderson
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A última tentação de Evo Morales e uma questão de bom gosto ou da falta dele
O mau gosto não tem limites. O gosto pela falta de gosto é uma doença que envenena as ruas das nossas cidades, os escassos lugares do metropolitano em que ainda conseguimos vir à tona e respirar, a televisão, os jornais, o cubículo onde sacrificamos a imaginação ao Deus todo poderoso que é o cumprimento de tarefas que sempre se cumpriram mesmo que não se faça puto de ideia porque ainda se continuam a executar. O mau gosto é a prova cabal de que a beleza e a sensatez estética estão pela hora da morte. Não, o bom gosto não é um mero pormenor decidido pela subjectividade de cada ser que habita este mundo em decadência estética. Há padrões, porra, tem que haver! Uma velha desdentada que grita que nem uma possessa num elevador quase cheio de gente que vem do calor da rua, pós almoço, que vocifera que isto já não cabe mais ninguém, que isto ainda cai, ai que devia sair gente, fo%&$E-s$, que subjetividade é que poderá estar aqui em causa que possa classificar isto como um acto que não seja de mau gosto? A gorda do café que nos atende com um fio dental a sair pela calça de lycra fora, como se pretendesse testemunhar ao mundo que a sua retaguarda é feia, gordurosa e celulitosa mas que é dela e é para se ver, isto não pode nunca ser um acto que roce sequer um mínimo dos mínimos do bom gosto. Gente que comete as maiores patifarias ao longo da carreira profissional e política e que perora como o último dos santos beatificados em tudo o que é canal televisivo, esta merda não pode ser de bom gosto segundo nenhum padrão estético ou moral! Pronto, desculpem, já tenho os tímpanos a ressuscitar dos berros da velha com problemas irremediáveis ao nível da dentição. Obrigado pela atenção.
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Jogos perigosos
O ano da fotografia desconheço, mas o local é algures na Irlanda do Norte. O enquadramento é o de um soldado que se dirige, solitário e decidido, em direcção a uma carrinha, com o objectivo de desarmadilhar uma bomba nela colocada. No lado esquerdo da fotografia, um prédio amarelado pelo passar do tempo ou pela má pintura, um irónico e tenebroso convite para um encontro com Deus. O soldado caminha para o desconhecido sem pestanejar. Sabe que é aquela a sua missão, o seu trabalho, o destino de que não se pode desviar. Estas e outras palavras são obviamente supérfluas, tudo se decidirá no jogo de xadrez entre o terreno e o divino, existindo a secreta esperança de que o mesmo não esteja viciado à partida.