Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
O cemitério de folhas
Olhava as letras como quem lê, mas sofria de uma profunda incapacidade de beber o prazer da leitura, da arte, dessa imitação da vida, da própria vida. Recordava outras leituras, vivas, partilhadas, orgias de palavras que inevitavelmente se diluíam na fogueira dos corpos. Entendia as memórias como a parte morta, doce ou amarga, da vida que os dias e os anos lhe tinham devorado. Sopravam-lhe que era possível viver de memórias, seguir em frente e sorrir com o terno abraço de quem já não o tocava, que era suficiente sobreviver gloriosamente com a lembrança daquele beijo. Ele abanava furiosamente a cabeça, recusava-se a viver na imobilidade, na triste dança das folhas mortas. As memórias já só lhe faziam sentido como um atalho para o caminho a percorrer. Rejeitava deixá-las morrer, melhor, insistia em impedi-las de viver. Enfrentava as memórias como D. Quixote desafiava os moinhos, louca e convictamente, tudo fazendo para as reviver, para que ganhassem nova vida, o seu desígnio era ressuscitá-las do cemitério de folhas.
Ela olhou para ele e sorriu. Sempre o mesmo adolescente borbulhento, sempre o mesmo tolo. E, ainda assim, por mais que o negasse, não conseguia deixar de o amar, mesmo que os seus conceitos de amor fossem, supostamente, distintos.
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Voltar?
Nunca voltar a um sítio onde se foi feliz ou voltar sempre, insistentemente, convicto de que a receita original poderá eternamente ser repetida? A vida muda-nos mas o que nos mudou poderá ser fonte de renovada evolução? E será que mudar estará sempre mais próximo do que nos torna um pouco mais felizes? E mudar é evoluir? Não haverá um ponto em que irmos para lá do que somos e de onde estamos, essa insatisfação constante, essa interminável busca de melhor mais não é do que sinónimo de inadaptação, de incapacidade para disfrutarmos do que temos e do que somos? Porque perdemos nós tempo a pensar em todos estes irresolúveis dilemas e simplesmente não nos limitamos a ser e a estar, ao sabor da maré, seja ela forte ou calma como um mar morto e terno?
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Numa pequena e delicada caixa
Tudo o que se apoderava dela naqueles momentos era de uma força incomensurável e, contudo, cabia numa pequena e delicada caixa. Os momentos de êxtase, o toque mágico, como se os dedos fossem uma continuação dos seus nervos e assim a fizessem sentir, vibrar, enlouquecer muito para além do seu corpo, do mundo que julgava conhecer. Num outro universo residiam as sensações inigualáveis, o amor que nunca sonhara existir, a sintonia de dois seres tão diferentes, mas que tocavam nas mesmas cordas um do outro, que produziam os mesmos acordes, como que um canto de sereia de outro mundo. Na pequena e delicada caixa que escondia no seu peito viviam agora as memórias que a faziam viver e sofrer. Não era fácil viver assim, mas preferia uma centelha dessas memórias a todas as vidas que a vida tinha ainda para lhe dar.
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A perfeita imperfeição
As palavras ainda lhe ressoavam na alma, no corpo, intensificadas pela dor vagarosa e perfurante da sua ausência. Sentia falta de tudo nele. Dos sorrisos, das carícias, do brutal e inigualável sexo, mas eram as conversas sem fim e sem destino que lhe tolhiam a saudade.
- “Minha querida, quero que me fales dessas angústias, não as guardes para e em ti. Quero ser mais do que uma noite bem passada, uma mão cheia de prazer, que a queca do século”.
- “Sim, sabes que o és. És muito mais para mim do que o teu corpo maravilhoso.”
- “Agradeço os elogios que fazes ao meu envelhecido corpo. Sinto a tua sinceridade, mas no fundo ambos sabemos que a beleza não é a que vês, mas sim a que sentes, do prazer que ainda te consigo dar”.
- “O mesmo posso então eu dizer de ti, meu amor. Não sou a Deusa que tanto idolatras, sei que o dizes porque este prazer que partilhamos nos conduz além da perfeição física, nos faz considerar as nossas próprias imperfeições parte da nossa beleza”.
A soma das suas imperfeições era tão mais perfeita que todos os corpos perfeitos do seu passado.
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Para lá do nevoeiro
Olhando para um passado remoto, memórias ténues como o nevoeiro numa madrugada esquecida, lamentavam o pudor dos olhares não cruzados, a timidez que calara as palavras. Hoje, num futuro já tarde demais, sabiam que o passado era irrecuperável, que as omissões de ontem não mais se converteriam em acções de um qualquer amanhã. A vida era assim e assim a aceitavam, temendo mexer com o equilíbrio do curso dos dias e das vidas. A maré conduzia-os em caminhos paralelos e, contudo, nunca se sentiram tão próximos.
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A miragem
Ele insistia em perseguir o sonho impossível, navegando incessantemente no imediato e na descontrolada atracção que as labaredas da paixão sobre si exerciam. O futuro não o reconhecia, só aceitava o presente, como se amanhã fosse um dia longínquo muito além do seu horizonte. Ela embarcara nessa viagem pelas mesmas razões, pois não resistia à dança inebriante do fogo. Um dia, cansada de não ver o horizonte para lá da cortina de fumo produzida pelas labaredas, decidiu que o futuro venceria a outrora irresistível voracidade do presente. Ele sentiu o presente despedaçar-se, mas compreendeu. Apesar dos seus desejos imediatos e da bebedeira do momento, aprendera a amar, mais do que tudo, a serenidade nos olhos dela. E essa serena felicidade (?) era tão valiosa e tão merecida que estilhaçara os limites do hoje para todo o sempre, rumo a um futuro onde a sua presença pouco mais era que uma miragem.
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A boneca de porcelana
Como eram belos os tempos em que nada era imediato, tudo envolvia dedicação, como o simples gesto de acertar com a agulha do gira-discos na ranhura certa do vinil. Seduzir não era carregar num botão que nos dirigia automática e friamente para a música pré-definida, era cuidar do disco para que não tivesse riscos e afagar a agulha em cada música, era tocar sem pressa num corpo de porcelana, era toda uma envolvência que simbolizava o privilégio de viver esse momento único e irrepetível. Hoje tudo é fácil, os engates estão à distância de um touch, uma queca pode ser só um desabafo de quem está aborrecido. Que saudades do vinil.
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O beija-flor
A garganta estava seca, as palavras evitavam abandonar a fonte estéril. Sentia a imaginação definhar e a inspiração longínqua. Os motivos por que outrora cravava sofregamente os dedos na caneta esfumaram-se nas idas e vindas da vida, nos encontros e desencontros com que o destino teimava em confrontá-lo. Sabia que um dia usaria esses reveses e as memórias já menos dolorosas como o fermento que faria germinar as palavras, mas neste momento sentia que, mais do que motivos para escrever, faltava-lhe vida vivida, intensamente vivida, que lhe trouxesse de volta a sofreguidão de estrangular a caneta. Faltava-lhe alguém para quem escrever, que lhe bebesse as palavras como o beija-flor bebe o néctar das flores, que o forçasse a espremer cada palavra como se fosse a última, como se o suco que jorrasse nas folhas fosse o elixir mágico que lhe devolveria a vida e a paixão de escrever.
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Recomeçar, sem nada deixar
Nunca dissera adeus. Em todos os momentos em que tivera que deixar algo ou alguém evitara sempre as despedidas. Não que as receasse, a sua dor, a sensação de perda, mas exactamente o contrário. Para ela nada fica para trás, tudo faz parte da estrada sem fim, tudo é matéria e não matéria que o corpo, a alma e o espírito absorvem naturalmente. Como se o seu ser fosse uma sanguessuga invertida, um parasita no bom sentido, pois a tudo se entregava, tudo possuía com a força da sua tímida mas destemida paixão de viver. A contradição aparente entre a timidez e a paixão eram toda ela. Os extremos habitados por um furacão que dormia nos seus braços de águas cálidas. Nunca olhara para trás. Não precisara. Estava sempre defronte de si, em si, o que já fora. O novo mundo era seu, agora, e na hora em que partisse. Cheirava a mar e a areia molhada. O beijo quente do pôr do sol ofereceu-lhe um sorriso, o primeiro de muitos.
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Os Pink Floyd é que sabiam da poda
Chegamos quase sempre atrasados à percepção do momento certo em que devemos dizê-lo. Quase sempre, invariavelmente, admitimos num sussurro tímido e interno que devíamos tê-lo dito. Perdemos o momento por preguiça, por timidez, porque o que vemos à nossa volta, o que à força querem que aprendamos é que a exposição clara e sem barreiras do que sentimos não se coaduna com os tempos que vivemos, com as cerimónias e parcimónias, com a merda dos com licença, dos se me permite, com a puta das vénias e dos sorrisos formatados de circunstância. Gostava que aqui estivesses. É assim tão difícil?