Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
O tempo da falta de tempo
A arte do sentimento teima em desacompanhar a sucessão vertiginosa de acontecimentos, de exigências, solicitações, expedientes, prazos e tarefas que se atropelam. A vida recusa olhar-se no espelho, ter tempo para o autoconhecimento. Os dias fogem por entre os dedos, não como grãos de areia que, ainda assim, apresentam alguma doce lentidão na sua queda modorrenta, mas como cataratas de água pesada como chumbo. Por entre os afogamentos de sensações perece a empatia, definha a capacidade de olhar e amar o outro, o vulgar outro e o Outro que tudo sempre foi para nós, mas que a vida teima em encostar nas vielas da falta de tempo. Como se a voracidade do tempo fosse mais forte do que nós. Será? Ou será este soçobrar perante a corrida destemperada dos ponteiros do relógio uma mera distração, o deixar-nos levar pela corrente sem sequer tentar nadar no sentido contrário desse silencioso turbilhão? Voltar a saber amar é saber parar o tempo, recusar a escravidão dos supostos “tempos modernos”, os tempos da falta de tempo. Olhar, parar, recusar ir na onda. Viver. Amar.
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Make love, not war - day 3
Para que queremos o amor? O que mudamos na nossa vida quando o encontramos? Cuidamos de o alimentar, de lhe atenuar as dores, de lhe retardar o inevitável definhar? Porque o procurámos em primeiro lugar? Amamos o outro como sempre sonhámos ser amados? O excesso de amor, existe? Existindo, onde nos conduz essa ausência de moderação na nobre arte de amar? Aborrecem-nos, amolecem-nos, os desregramentos do amor? Ou, em sentido contrário, o excesso de amor será o rastilho para o recrudescer da semente do ódio que miserável e irremediavelmente habita o ser humano? Será a guerra uma consequência desses excessos, uma resposta aos instintos selvagens que o amor entorpece e que, hipoteticamente, o seu excesso desperta? Para que queremos o amor?
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Corona break
Traders wearing face masks are seen on the trading floor at a flower auction trading center following an outbreak of the novel coronavirus in the country, in Kunming, Yunnan province, China. - Fotografia via REUTERS
Porque é que realmente tememos este coronavírus? Pela saúde dos nossos, dos nossos velhos? Acredito que em parte sim, como creio que o medo do desconhecido, a falta de certezas, mexa com a nossa vida medianamente confortável, com a sensação de que guerras mortíferas e epidemias eram, até há pouco tempo, algo longínquo, um fantasma que só nos incomodava um pouco no barulho de fundo dos ecrãs que, monotonamente, acompanham as refeições lá de casa, preenchem os buracos do diálogo familiar estafado e, por isso, tantas vezes substituído por esses ruídos estranhos e distantes, por imagens que nos fazem socorrer do telecomando, para não assustar as criancinhas, para não termos que explicar-lhes aquelas desgraças e crueldades, estranhezas estapafúrdias à luz dos nossos dolentes dias, fenómenos do Entroncamento tão fantasticamente desenquadrados do nosso casulo familiar, escolar, profissional, como uma praga de um universo desconhecido, um filme de série B entregue aos exageros digitais dos modernos efeitos especiais.
Ou será que as nossas preocupações são essencialmente outras? Falo de taxas de crescimento, de incomes, de revenues, de viagens e eventos tragicamente cancelados, de PIB´s que estavam em vias de subir sem parar e agora estagnam nos esporões do filho da mãe do vírus. Falo de empresas preocupadas com quedas abruptas nas exportações, da matéria prima que escasseia porque vem lá dessas terras malditas do Oriente, falo de patrões e governos amofinados porque o filha da puta do vírus lhes veio baralhar os números, os orçamentos, as expectativas económicas. Isto é a vida dos dias de hoje, dirão alguns, o nosso quotidiano, o que nos põe a comidinha na mesa ao jantar e a marmita ao almoço à secretária, enquanto babamos em frente a um écrã imune a vírus. É a vidinha, dizem eles e alguns de nós.
É esta a vida que tememos perder? Aproveitemos para pensar nisso que, enquanto o Corona vai e vem folgam as costas.
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Nina Simone - Ain't Got No, I Got Life
Ain't got no home, ain't got no shoes
Ain't got no money, ain't got no class
Ain't got no skirts, ain't got no sweaters
Ain't got no perfume, ain't got no love
Ain't got no faith
Ain't got no culture
Ain't got no mother, ain't got no father
Ain't got no brother, ain't got no children
Ain't got no aunts, ain't got no uncles
Ain't got no love, ain't got no mind
Ain't got no country, ain't got no schooling
Ain't got no friends, ain't got no nothing
Ain't got no water, ain't got no air
Ain't got no smokes, ain't got no chicken
Ain't got no...
Ain't got no water
Ain't got no love
Ain't got no air
Ain't got no God
Ain't got no wine
Ain't got no money
Ain't got no faith
Ain't got no God
Ain't got no love
Then what have I got
Why am I alive anyway?
Yeah, hell
What have I got
Nobody can take away
I got my hair, got my head
Got my brains, got my ears
Got my eyes, got my nose
Got my mouth
I got my...
I got myself
I got my arms, got my hands
Got my fingers, got my legs
Got my feet, got my toes
Got my liver
Got my blood
I've got life
I've got lives
I've got headaches, and toothaches
And bad times too like you
I got my hair, got my head
Got my brains, got my ears
Got my eyes, got my nose
Got my mouth
I got my smile
I got my tongue, got my chin
Got my neck, got my boobs
Got my heart, got my soul
Got my back
I got my sex
I got my arms, got my hands
Got my fingers, got my legs
Got my feet, got my toes
Got my liver
Got my blood
I've got life
I've got my freedom
Ohhh
I've got life!
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Black fucking friday!
Corre pula grita, transpira por entre os teus pares, empurra, gira, geme, ressuscita por entre a pilha de roupa gloriosamente empunhando aquela blusa de cetim a preço da chuva, esquece a lama e o frio enquanto anseias que as portas se descerrem e te entreguem ao paraíso, suporta o calor sufocante e fétido da avidez global, pensa na alegria dos petizes com a nova PS€€€, grita de alegria e de raiva, vocifera por entre as hienas famintas, chora se necessário, encerra o dia apenas e só quando as cortinas da volúpia gananciosa descerem em definitivo. Deita os miúdos, arruma o que resta da interminável guerra diária e familiar no palco da tua querida cozinha, desmaia no sofá ao lado do teu mais que tudo, luta contra ti própria e o viciante cansaço em busca de mais um inesquecível episódio da série da moda antes de babares a almofada, sonha com mais um dia irrepetível, martela mais um prego no caixão.
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Formiguinha, formiguinha...é isto que buscas para a tua vida?
O Bolas não morreu, o Bolas nunca morrerá, pois viverá sempre nos nossos corações. Adoro clichés bacocos, não tanto quando adoro que me digam que têm saudades do Bolas. Sim, a puta da falta de tempo, sim, o trabalho perdido por entre urgências várias, sufocado por entre a voracidade das necessidades que se multiplicam como parasitas incómodos nos cabelos do meu desgraçado filho, contaminado por crianças a quem os pais não tiveram tempo de aplicar o shampoo anti-piolhos, porque a voracidade dos seus dias não lhes permite aquela meia hora de pausa em que o shampoo faz o seu mortífero trabalho. Corremos incessantemente, dedilhamos e-mails nervosos e repletos de gralhas, a perfeição já foi, hoje é a velocidade que conta, a sede de dados e inputs, reportes e pontos de situação, todo esse emaranhado de dados desconexos que nunca alcançarão o estatuto de informação hão-de satisfazer alguém, uma eminência impecavelmente engravatada na sua torre de marfim onde o sexo dos anjos não se discute, alguém que pensará que o seu dia foi imensamente produtivo, mesmo que nada de digno seja produzido pelas suas formiguinhas hiperativas. A imagem que encima este post de saudades dos tempos em que o Bolas de quando em vez tinha tempo para respirar é da cidade de Norilsk, na Rússia, fundada em 1935 como um gulag, situada a cerca de 240 km a norte do círculo polar ártico. O tempo parado, a doce indolência das crianças. Pergunto-me se as crianças terão de emigrar para Norilsk para terem tempo de ser crianças. É isto que queremos para nós e para os nossos filhos?
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Amor à primeira vista
Há aqueles dias, semanas, meses, em que um tipo deixa de ter algo interessante para dizer. Está-se tão embrenhado na vida que só se executa, anda para a frente, fecha dossiers, desenrola projectos, acorda putos, deita putos, monta móvel do Ikea, enche a bagageira até ao limite, despeja as malas para o velho casulo, lava a loiça, seca a loiça, zapping, mais zapping, a merda do Sporting que caminha em círculos infinitos de incompetência e imaturidade, a política nacional nas mãos do mestre da táctica, a política lá fora nas mãos de loucos furiosos ou de ursinhos fofinhos, o diabo a sete. Um gajo vai a ver e o que interessa é mesmo isto. A primeira vez que os lábios se encontram...
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A busca incessante
Chuva. Pesada e insistente. O frio que regressa. Os dois putos no carro a caminho da escola, ainda ensonados, como que sonâmbulos a caminho de um qualquer cadafalso. O barulho da chuva, o trânsito, o céu cinzento escuro. O Francisco, 6 aninhos, parece, lentamente, despertar do seu torpor:
- Pai, porque é que existimos?
A meio das reviengas na rotunda do relógio, mais concentrado em não estragar a chapa do que em atingir a profundidade do Francisquinho, levo uns bons 20 segundos para responder:
- Há quem diga que foi Deus que criou o mundo e os homens, Francisco.
O Miguel, 9 anos e mais dado às filosofias terrenas, contrapõe:
- Não não, foi o big bang!
O Francisco, eternamente insatisfeito com as explicações para os porquês da vida, clarifica:
- Não é como é que existimos, é porque é que existimos?
Mau…mais 20, 30 segundos, e tento uma escapatória:
- Se calhar existimos para ser felizes e ajudar outras pessoas de quem gostamos a ser felizes, Francisco. O que achas?
- Sim, talvez pai!
Desta vez é o Miguel que fica insatisfeito:
- Hum, não sei pai, não sei se é bem por isso.
Antes de fechar o debate teológico com mais uma música do Agir que os traga de volta à simplicidade da música simples, fecho a questão deixando-a em aberto:
- Não penses muito nisso, Miguel, boa parte das pessoas morrem sem descobrir a resposta a essa questão. E olha, muitas morrem felizes, mesmo sem o ter descoberto a tempo.
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Disfrutai do fim de semana, boa e nobre gente
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O carrossel
Gira que gira e volta a girar.
Creio que esta era uma lengalenga entoada nos idos da infância, provavelmente a acompanhar a dança do pião de madeira, embalado pela corda suja e coçada dos nossos sonhos. Éramos felizes como jamais o voltámos a ser e pouco interessa se o sabíamos ou não, pensar nisso era um absurdo visto aos olhos de crianças sorridentes e de joelhos esfolados, era uma perda de tempo, apenas mais uma parvoíce aborrecida do mundo dos adultos. A lenta valsa do pião, naqueles vagarosos segundos que antecipavam a sua inevitável queda por terra, era um vislumbre nebuloso da tristeza que ainda não conhecíamos. Arrumávamos o pião no bolso do fato de treino e rumávamos aos casulos onde a alcatifa já não cheirava a relva, onde os joelhos já não se esfolavam no mar de risos dos nossos amigos. Vinha o banho e a pele enjoativamente cheirosa, o jantar invariavelmente a contragosto, os trabalhos de casa sem necessidade de qualificativos, os traumáticos deveres que diziam ser as ferramentas do nosso futuro, daquele futuro que hoje conhecemos e que sabe a saudade e a desperdício.
O carrossel de ontem, de corridas sem fim, saltos e gargalhadas, é hoje o passo esbaforido e exausto para impedir que mais uma porta do autocarro se feche nas trombas dos nossos sonhos. Os saudosos gritos estridentes de alegria pura e descontrolada são hoje as buzinas irritadas e chorosas que temperam o túnel de alcatrão gasto e de prédios tristes, a rua dos nossos pesadelos.
Não, a vida não é assim tão triste quando abandonamos a criança que fomos. Não é? Será que a vivemos com uma réstia do brilho da nossa infância? Será que percebemos que é aí que estará a nossa salvação, o Santo Graal da felicidade? Vejam lá isso.