Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
We love to eat them, por Harvey Weir (#perolasdoinstagram)
“*no men were harmed in this photoshoot. We love men and we love to eat them.”
É tão isto. Estamos tão nas vossas mãos. Mesmo que pensemos que estamos assim, entregues e submissos apenas porque o queremos e permitimos, não é essa a realidade. Estamos neste estado de vegetais incapazes de quebrar o feitiço porque o verdadeiro poder está em vós. Na vossa superior racionalidade, no incomparável poder de sedução, na ponta da vossa língua, na volúpia de algodão doce desses lábios de salgado veneno, na fornalha que passeiam negligentemente entre as coxas. Estamos tão fodidos.
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Da série "Amor em tempos de pandemia" - Zoom
Dificilmente conseguiria voltar a olhá-lo nos olhos. Semanas de trocas de mensagens, piadas inicialmente leves, trocadilhos que foram ganhando peso e temperatura. Foi resistindo ao habitual pedido de dar o passo seguinte dos tempos modernos, o salto quântico para a videochamada. Afinal, ele era apenas um amigo de um amigo, um like numa foto do Instagram, a curiosidade aguçada por um comentário disfarçadamente picante. Confinada há mais de 6 meses acedeu. Sem namorado, sem paciência para os seus eficazes mas gélidos brinquedos e para a melancólica e automática auto-satisfação que lhe concediam, decidiu experimentar caminhos nunca antes desbravados.
Agendou a videochamada para a hora do jantar, prevendo a necessária antecedência para os preparativos. Farta de meias tintas, decidiu arriscar tudo. No seu íntimo, não teve dúvidas que do outro lado ele procurava o mesmo, sexo virtual, sem pudores nem hesitações, algo novo, excitante, garantido. Botas de salto alto, top sexy, o assassino fio dental. Foda-se, até ela se sentia excitada em imaginar que do outro lado poderia encontrar uma mulher com esta poderosa iniciativa. Bebeu um copo de vinho, um trago de whisky e, com 10 minutos de atraso, clicou no link do Zoom. Ele estava sentado no sofá, calções de pano barato e amarfanhado, t-shirt cinzenta encardida, mini Sagres e pacote de batatas fritas entre as pernas. O cabrão estava pronto para assistir a mais um qualquer jogo de futebol, só podia. Silêncio. Mais silêncio. Riso nervoso dele, “desculpa, não estava à espera…”, interrompido por um colérico, mas frio “Vai-te foder, idiota de merda”. Desligou, deitou-se no chão frio e chorou. Chorou por ela e pela falta de tesão no mundo.
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Nada de nada
Por aqui o silêncio acompanha os tempos estranhos que vivemos. Não sabemos muito bem o que dizer, o futuro é incerto, todas as palavras parecem petulantes ou desnecessárias. A vida encarrega-se de desmentir essa ideia idiota de que somos os donos de uma qualquer razão. Tenho por exemplo o hábito de escrever sobre mulheres, relações, seduções, e o que sei eu da vida ou do fruto proibido, do amor ou da falta dele? Quem sou eu para me armar em sabedor de coisa alguma?
“- Porque escreves dessa maneira sobre mulheres?
- De que maneira?
- Tu sabes.
- Não, não sei.
- Pois bem, eu acho que é uma pena dos diabos que um homem que escreve tão bem como tu não saiba nada de nada sobre mulheres”
In “Mulheres”, de Charles Bukowski
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Mil máscaras
Quatro paredes que encerram o medo nos recantos do nosso assético casulo. A vida mascarada de vida, o medo convertido no novo normal. Pelo canto do olhar desconfiado as saudades do sorriso aberto de há 3 meses, há 3 meses foda-se, há 3 meses a rapariga da pastelaria sorria enquanto corava e corava enquanto sorria, desfazia-se no calor dos meus galanteios como o creme do mil folhas se evaporava na minha boca a ferver do sorriso dela. Não, não há na minha vida nenhuma loira de generosos e fartos seios da pastelaria do bairro, há apenas a raiva por não ver sorrisos abertos e tímidos por detrás das cirúrgicas máscaras que nos converteram a todos em doentes ambulantes, em hipocondríacos cinzentos e macilentos, zombies sonâmbulos cuja ambição maior é fugir ao bicho, ao Covid, ao coveiro, à cova onde todos acabaremos, com ou sem máscara. O caminho que faremos até deitarmos as costelas na terra fria somos nós que o escolhemos. Preferem fazê-lo a sorrir e a beijar, ou a sentir o bafo do medo encostado a lábios secos e carentes do calor da boca do vosso amor, do engate do momento, da moça da pastelaria de mamas de mil sonhos e folhas? Vejam lá isso, porra.
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Strange days
Arte por Flavio Greco Paglia
O que ontem tomámos como garantido e que assim vinha sendo há anos pulverizou-se em escassas e distópicas semanas. Um vírus microscópico, uma ameaça invisível que torna visível a fragilidade humana, a infantilidade das certezas, a nossa incapacidade de adaptação. Os líderes mundiais que julgámos medianamente imbecis mas, ainda assim, foda-se, ainda assim, acreditávamos terem uma pinga de bom senso ou, pelo menos, a inteligência de se rodearem de conselheiros sábios, assumiram toda a imbecilidade megalómana que julgáramos impossível de atingir. Amigos normais que aprendemos a admirar sucumbem ao pânico e transformam-se, por artes de feitiçaria, em débeis imitações de adolescentes borbulhentos e geneticamente imaturos. Já ninguém se lembra porque tem a dispensa repleta de rolos de papel higiénico, há quem pague pequenas e patéticas fortunas por máscaras fashion. Uma amiga que admirava pela calma e sensatez dispara nas redes sociais, ganha garras e garra e ataca os confinados desesperados “Gajos casados que andam ao engate, só prova o quão cobardes são. Preferem a segurança aparente de uma relação falhada e depois tentam comer por fora. Não quero julgar ninguém, cada um faz o que quer, mas pelo menos aguentem quando levam negas, ok?”. Assomos de louca coragem (se é bom ou mau, não serei eu a julgar) confundidos por entre reações de pânico, como a de um conhecido bem posicionado nas hierarquias do poder que enviou uma mensagem de whatsapp, para as suas centenas de contactos, alertando, um dia antes da declaração do estado de emergência, para que todos fossem a correr aos supermercados e farmácias, porque ia tudo esgotar, íamos ficar meses sem poder sair, salvem-se e salvem os vossos, gritava ele, desesperado, marimbando-se para todos os outros, pobres mortais, que não tiveram acesso a essa informação privilegiada.
“O mundo não será destruído por aqueles que fazem o mal, mas por aqueles que assistem sem nada fazer”, publica uma amiga, atribuindo a sábia frase ao grande Einstein, só não sei se ela vai fazer algo com essa grandiloquente mensagem ou se vai apenas sorrir, com o ego afagado por si própria e pela sua incrível capacidade de espalhar sabedoria. Olho para os meus filhos, saudosos dos amigos e da escola, mas a saber disfrutar desta nova proximidade familiar, ainda que forçada, e pergunto-me quem serão os génios que querem devolver as crianças ao seu mundo, restituindo-lhes algum normal, com regras que apenas lhes ensinarão o caminho da desumanização. Não sou o Albert, mas sou rapaz para dizer que o futuro somos nós que o construímos e que o medo não é bom conselheiro para os dias que hão-de vir. Vejam lá isso.
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Até ao dia
John Henry Fuseli, "The nightmare"
O desejo que outrora fora sonho recorrente era hoje o pesadelo das manhãs. Todas as alvoradas eram acompanhadas de um lento içar do leito, sob o peso da crueza das imagens sonhadas, os sons, a boca distorcida por um misto de dor e prazer. Deixara-a partir com a certeza que o ferro em brasa da sua força, da sua paixão, seria sempre imanente e presente na sua pele, no mais fundo de si. Viveu por entre esses desejos inexplicáveis, assentiu que o que lhe era mais precioso passasse a sonho em forma de pesadelo. Dir-se-ia uma estratégia masoquista e desesperada, uma derradeira réstia de esperança de que o nonsense lhe devolvesse o louco sonho que a razão sempre lhe negara. Mais uma noite, mais um fechar de olhos e um abrir do pesadelo. Até ao dia em que o louco sonho regressasse e lhe despedaçasse a triste razão. Até ao dia.
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Nina Simone - Ain't Got No, I Got Life
Ain't got no home, ain't got no shoes
Ain't got no money, ain't got no class
Ain't got no skirts, ain't got no sweaters
Ain't got no perfume, ain't got no love
Ain't got no faith
Ain't got no culture
Ain't got no mother, ain't got no father
Ain't got no brother, ain't got no children
Ain't got no aunts, ain't got no uncles
Ain't got no love, ain't got no mind
Ain't got no country, ain't got no schooling
Ain't got no friends, ain't got no nothing
Ain't got no water, ain't got no air
Ain't got no smokes, ain't got no chicken
Ain't got no...
Ain't got no water
Ain't got no love
Ain't got no air
Ain't got no God
Ain't got no wine
Ain't got no money
Ain't got no faith
Ain't got no God
Ain't got no love
Then what have I got
Why am I alive anyway?
Yeah, hell
What have I got
Nobody can take away
I got my hair, got my head
Got my brains, got my ears
Got my eyes, got my nose
Got my mouth
I got my...
I got myself
I got my arms, got my hands
Got my fingers, got my legs
Got my feet, got my toes
Got my liver
Got my blood
I've got life
I've got lives
I've got headaches, and toothaches
And bad times too like you
I got my hair, got my head
Got my brains, got my ears
Got my eyes, got my nose
Got my mouth
I got my smile
I got my tongue, got my chin
Got my neck, got my boobs
Got my heart, got my soul
Got my back
I got my sex
I got my arms, got my hands
Got my fingers, got my legs
Got my feet, got my toes
Got my liver
Got my blood
I've got life
I've got my freedom
Ohhh
I've got life!
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O cemitério de folhas
Olhava as letras como quem lê, mas sofria de uma profunda incapacidade de beber o prazer da leitura, da arte, dessa imitação da vida, da própria vida. Recordava outras leituras, vivas, partilhadas, orgias de palavras que inevitavelmente se diluíam na fogueira dos corpos. Entendia as memórias como a parte morta, doce ou amarga, da vida que os dias e os anos lhe tinham devorado. Sopravam-lhe que era possível viver de memórias, seguir em frente e sorrir com o terno abraço de quem já não o tocava, que era suficiente sobreviver gloriosamente com a lembrança daquele beijo. Ele abanava furiosamente a cabeça, recusava-se a viver na imobilidade, na triste dança das folhas mortas. As memórias já só lhe faziam sentido como um atalho para o caminho a percorrer. Rejeitava deixá-las morrer, melhor, insistia em impedi-las de viver. Enfrentava as memórias como D. Quixote desafiava os moinhos, louca e convictamente, tudo fazendo para as reviver, para que ganhassem nova vida, o seu desígnio era ressuscitá-las do cemitério de folhas.
Ela olhou para ele e sorriu. Sempre o mesmo adolescente borbulhento, sempre o mesmo tolo. E, ainda assim, por mais que o negasse, não conseguia deixar de o amar, mesmo que os seus conceitos de amor fossem, supostamente, distintos.
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Amor à primeira vista
Há aqueles dias, semanas, meses, em que um tipo deixa de ter algo interessante para dizer. Está-se tão embrenhado na vida que só se executa, anda para a frente, fecha dossiers, desenrola projectos, acorda putos, deita putos, monta móvel do Ikea, enche a bagageira até ao limite, despeja as malas para o velho casulo, lava a loiça, seca a loiça, zapping, mais zapping, a merda do Sporting que caminha em círculos infinitos de incompetência e imaturidade, a política nacional nas mãos do mestre da táctica, a política lá fora nas mãos de loucos furiosos ou de ursinhos fofinhos, o diabo a sete. Um gajo vai a ver e o que interessa é mesmo isto. A primeira vez que os lábios se encontram...
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O Verão é...
...sangria estupidamente gelada, vestidos às bolinhas, decotes esfusiantes ofuscados por gelado ardente de um só sabor, o inigualável lábios em calda de pecado mortal...