Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Numa pequena e delicada caixa
Tudo o que se apoderava dela naqueles momentos era de uma força incomensurável e, contudo, cabia numa pequena e delicada caixa. Os momentos de êxtase, o toque mágico, como se os dedos fossem uma continuação dos seus nervos e assim a fizessem sentir, vibrar, enlouquecer muito para além do seu corpo, do mundo que julgava conhecer. Num outro universo residiam as sensações inigualáveis, o amor que nunca sonhara existir, a sintonia de dois seres tão diferentes, mas que tocavam nas mesmas cordas um do outro, que produziam os mesmos acordes, como que um canto de sereia de outro mundo. Na pequena e delicada caixa que escondia no seu peito viviam agora as memórias que a faziam viver e sofrer. Não era fácil viver assim, mas preferia uma centelha dessas memórias a todas as vidas que a vida tinha ainda para lhe dar.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Lake, Veronika Lake
"Hollywood gives a young girl the aura of one giant, self-contained orgy farm, its inhabitants dedicated to crawling into every pair of pants they can find"
Em 1971 a diva Veronika Lake descrevia assim o clima que pairava sobre Hollywood. Depreendemos que por detrás da cortina destas palavras o assédio sexual fosse parte integrante dessa quinta orgiástica que Veronica descreve. Seria assim com o assédio sexual no mundo das artes, seria assim certamente com o fenómeno do bullying nas escolas. Há 30 anos atrás, era eu um jovem pré-adolescente, já o bullying existia nas escolas, nos grupos de miúdos que então brincavam à solta nas ruas dos Olivais, em todo o lado. Arrisco-me a dizer que esse triste mas real fenómeno era até mais intenso e gravoso do que nos dias de hoje, onde a propagação de imagens, histórias, notícias e afins tornam tudo bem mais próximo e grave. Quanto ao assédio sexual no cinema, na moda e em muitas outras profissões, não duvido que existisse igualmente, provavelmente em maior escala do que nos dias de hoje, em que os mecanismos de controlo e censura social estão bem mais aguçados, como se percebe dos recentes acontecimentos de denúncia e condenação social e penal dos prevaricadores. O que se passa, novamente, é que uma denúncia tem hoje um alcance global, através dos media e sobretudo das sufocantes e bigbrotherianas redes sociais. Não quero com isto menorizar a gravidade do bullying ou do assédio sexual (um só caso seria já demasiado gravoso para se calar), mas sim dizer que já antes existiam, embora muitas vezes ocultos sob o manto de um mundo menos global e aberto. Estes comportamentos desviantes devem ser combatidos, penalizados e primeiro que tudo prevenidos, aproveitando todos os mecanismos modernos e civilizacionais que o passar dos anos nos deram. Aprendamos com os erros do passado, utilizemos as ferramentas do presente, mas não façamos disto uma chinfrineira histriónica, como se o mundo de hoje fosse muito mais perigoso, obrigando-nos a trancar os filhos em redomas de cristal onde nem do sexo dos anjos se fala. Vejam lá isso.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O eterno retorno
Amava despertar nos suaves aromas do café pela manhã, simples e a ferver. Depois disso, a perfeição coincidia com o som surdo das palavras a ecoar dentro de si. Se depois desse momento só seu ele a possuísse como só eles sabiam, o dia, o mês, a vida podia fechar para balanço. Não havia nada a desejar para lá disso. Só o eterno retorno.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Créatures de rêve, Paris, 1952, por Robert Doisneau
Tiraram-lhe tudo, esvaziaram-lhe o sentido dos dias, só não lhe mataram as memórias e os sonhos que ainda se permitia. Estranhamente, os sonhos confundiam-se e perdiam-se nos suaves e quentes braços das nebulosas da memória. Os objetos oníricos que não lhe abandonavam o corpo, os sentidos e o espírito não partiam rumo ao futuro, tal a força com que se ancoravam no seu passado. Sonhar era regressar ao passado. Viver seria abdicar do passado?
Autoria e outros dados (tags, etc)
HOT!
Só tu me fazes falta pela manhã. O teu calor, o teu corpo fumegante, o beijo molhado que me invade todos os poros, a sensação de que a vida só começa depois de te ter. Sim, sabes que falo de ti, do meu vício de todas as manhãs, de toda a vida. Até à última gota. Quente, a ferver, até ao limite indefinível em que por um milionésimo de segundo não me queimas para todo o sempre a língua e a alma.
Autoria e outros dados (tags, etc)
A perfeita imperfeição
As palavras ainda lhe ressoavam na alma, no corpo, intensificadas pela dor vagarosa e perfurante da sua ausência. Sentia falta de tudo nele. Dos sorrisos, das carícias, do brutal e inigualável sexo, mas eram as conversas sem fim e sem destino que lhe tolhiam a saudade.
- “Minha querida, quero que me fales dessas angústias, não as guardes para e em ti. Quero ser mais do que uma noite bem passada, uma mão cheia de prazer, que a queca do século”.
- “Sim, sabes que o és. És muito mais para mim do que o teu corpo maravilhoso.”
- “Agradeço os elogios que fazes ao meu envelhecido corpo. Sinto a tua sinceridade, mas no fundo ambos sabemos que a beleza não é a que vês, mas sim a que sentes, do prazer que ainda te consigo dar”.
- “O mesmo posso então eu dizer de ti, meu amor. Não sou a Deusa que tanto idolatras, sei que o dizes porque este prazer que partilhamos nos conduz além da perfeição física, nos faz considerar as nossas próprias imperfeições parte da nossa beleza”.
A soma das suas imperfeições era tão mais perfeita que todos os corpos perfeitos do seu passado.
Autoria e outros dados (tags, etc)
A mulher, pelos olhos de Christian Coigny
Por entre os meandros do mundo virtual cruzei-me com a arte de Christian Coigny, um fotógrafo suíço que, pelo que fui debicando aqui e ali, é conhecido por ser um esteta da fotografia feminina, tal como Vermeer o era da arte de retratar as mulheres numa tela. O seu foco é retratar as mulheres com um profundo sentido de intimidade, mistério e delicado respeito. Os gestos simples das mulheres ganham pela sua lente uma complexidade elegante que permite beber ainda mais nitidamente a essência da sua beleza.
Pelos seus olhos, uma mulher a contemplar um vaso envolve-nos numa serenidade duradoura, as paisagens mais belas dissolvem-se e enriquecem a magia indefinida e viciante dos contornos femininos, um corpo reclinado na cama é um convite a uma morte feliz pois sabemos que poderia ser aquele o derradeiro momento da nossa existência.
Autoria e outros dados (tags, etc)
A miragem
Ele insistia em perseguir o sonho impossível, navegando incessantemente no imediato e na descontrolada atracção que as labaredas da paixão sobre si exerciam. O futuro não o reconhecia, só aceitava o presente, como se amanhã fosse um dia longínquo muito além do seu horizonte. Ela embarcara nessa viagem pelas mesmas razões, pois não resistia à dança inebriante do fogo. Um dia, cansada de não ver o horizonte para lá da cortina de fumo produzida pelas labaredas, decidiu que o futuro venceria a outrora irresistível voracidade do presente. Ele sentiu o presente despedaçar-se, mas compreendeu. Apesar dos seus desejos imediatos e da bebedeira do momento, aprendera a amar, mais do que tudo, a serenidade nos olhos dela. E essa serena felicidade (?) era tão valiosa e tão merecida que estilhaçara os limites do hoje para todo o sempre, rumo a um futuro onde a sua presença pouco mais era que uma miragem.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Da série "questões a não colocar, em hipótese nenhuma, a esses bichos"
Há uns dias, uma amiga que partilha casa com uma colega, revoltada com as desgraças dos contratos com as MEO´s e TVCabo´s cá do burgo, perguntava-me, do auge da sua irritação, o que raio é que duas mulheres vão fazer à noite, sem TV e sem Wifi? Olhei para ela, tentando esconder bem no fundo de mim a resposta que me subiu diretamente à boca (não diretamente vinda do cérebro, esclareça-se, até porque se assim fosse tinha descido e não subido) e lá consegui disfarçar (???), sugerindo a manicure ou palavras cruzadas. Mas porque é que fazem estas perguntas tão difíceis a bichos tão estranhos como os homens?
Autoria e outros dados (tags, etc)
A boneca de porcelana
Como eram belos os tempos em que nada era imediato, tudo envolvia dedicação, como o simples gesto de acertar com a agulha do gira-discos na ranhura certa do vinil. Seduzir não era carregar num botão que nos dirigia automática e friamente para a música pré-definida, era cuidar do disco para que não tivesse riscos e afagar a agulha em cada música, era tocar sem pressa num corpo de porcelana, era toda uma envolvência que simbolizava o privilégio de viver esse momento único e irrepetível. Hoje tudo é fácil, os engates estão à distância de um touch, uma queca pode ser só um desabafo de quem está aborrecido. Que saudades do vinil.