Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
Crónicas da pandemia - o medo
A parte do mundo que me é concedido ver da janela do quarto do rapaz mais velho, agora convertido, no período diurno, em escritório de teletrabalho, revela um curto trecho de estrada, entrecortada por árvores e ladeada pela velha e gasta calçada portuguesa. Na estrada o raro ruído dos carros entristece ainda mais o cinzento do céu. Na calçada são poucas ou nenhumas as almas penadas, quase sempre limitadas aos pesarosos e mascarados passeadores caninos. Há meses que este cantinho, este outrora viçoso blog, tem andado assim, ensimesmado, mal alimentado, macambúzio e desinspirado, refletindo o estado geral da nação que esta janela dos Olivais descerra, imitando um mundo que lá fora se lamenta, estupefacto e impotente no combate ao vírus invisível.
Escuto alguns - hoje menos do que ontem - que vislumbram nestes tempos novos e estranhos uma porta aberta para renovadas visões da humanidade, para uma crescente fraternidade, para quotidianos mais calmos e reflectidos, para gentes mais próximas do seu eu e da sua essência, mais preocupadas com as necessidades espirituais do que as materiais. Balelas, diz o meu vizinho do lado, próximo de um esgotamento após meses de teletrabalho ao lado da mulher, estado esse recentemente agravado com o regresso das três crianças ao quotidiano diário.
O mundo pede-nos algo que não estamos preparados para dar. Solidariedade, maleabilidade, pensar fora da caixa, respeito pela natureza. Aqui e ali vamos vendo algumas manifestações dessas respostas, mas tão deslaçadas e espaçadas que não permitem unirmo-nos num combate efetivo à praga virológica que nos atingiu como um tsunami invisível. Na calçada, arrasta-se uma velhota ao telemóvel, máscara descaída, semblante calmo, como que desafiando o que sabe há muito, que é certo e que não teme: a morte, a morte que paira nos pensamentos dos novos fazendo deles velhos assustados. Precisamos de chegar a velhos para deixar de ter medo, está mais do que visto. Precisamos da calma dos velhos, das suas certezas quanto às incertezas da vida (qual será o dia, a hora, o momento da despedida?), precisamos de não ter medo. O medo, muito para lá de nos fechar nestas quatro paredes de tijolo, fecha-nos no casulo de nós mesmos, na loucura que é vivermos sós nas nossas quatro paredes. Vejam lá isso.
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Até ao osso
Mais do que a solidão buscava o silêncio. Mais do que o afago do sol desejava a imensidão do mar. Ansiava somente pela sensação de que tudo o resto era mar, azul, inteiro, fiável, eterno e imune ao passar das horas, dos dias, dos anos. Mais do que essa sensação sonhava que um dia essa seria a sua realidade: ela e o mar, ela e nada mais. Soubera, desde o momento em que descobrira o amor, que era inevitável que o fim fosse esse. Não tivera, contudo, forças para abdicar de o viver até ao tutano, até que só restasse osso, dor e mar.
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Emma Hartvig - o presente inacabado
O último post indiciava que o blog abrira a porta à enxurrada de fotos de mulheres perfeitas e idílicas imagens de Verão. Falso, este blog não é de fiar. O cérebro tanto se desliga como no segundo a seguir borbulha de ideias, sufocado por dúvidas e prenhe de soluções imperfeitas. A fotógrafa sueca Emma Hartvig descobriu com a sua câmara o que boa parte da humanidade demora toda uma vida a reconhecer: não há corpos nem histórias de amor perfeitas, todas as histórias permanecem incompletas, o presente é um inacabado ponto de interrogação, a solidão tanto se vive só como acompanhado.
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Disfrutar - não ceder às maléficas e anestesiantes garras do maralhal
Perdermo-nos no ruído dos outros é esquecermo-nos de nós. Será vantajoso, se é esse o esquecimento que buscamos. Podemos, contudo, optar por nos perdermos em nós. Numa praia deserta ou semi-habitada. No silêncio mais perfeito que só a submersão no nosso mar nos devolve. Aquela esplanada repleta de inspiração visual e morta de sons humanos. Rir sem razão e sem eco, só porque sim. O silêncio aconchegante da música. Como única companhia o sonho nas asas do desejo.
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A distância na linguagem dos clichés
“A distância não a encontramos no espaço que nos separa mas sim no silêncio com que povoamos esse espaço.”
Era capaz de ganhar a vida a inventar clichés quase tão geniais como este. Ou a ter a arrogância de pensar que os clichés com que interpreto a vida podem sequer roçar a genialidade.
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Por um 2017 em que efectivamente contemos
Vieram as festas e a azáfama cega das jantaradas, das prendas, das compras e trocas, da falta de tempo para o aprofundamento das confortáveis futilidades da vida, e ficámos no canto a assistir, como se todo aquele alucinante movimento que nos afastou de nós próprios fosse o propósito de uma vida que parece não nos considerar na equação da nossa própria vida. Depois, chegou o início de algo novo e supostamente renovador, nem que seja apenas mais um leque de 365 conjuntos de 24 horas, e arrancamos a toda a velocidade, atropelando tudo e todos, espezinhando o nosso eu que clama baixinho por um momento, por uma pausa, por um olhar para dentro. Bom 2017 mas, por favor, não se esqueçam de vocês.
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Teaser
Há dias em que tudo é preto e branco sem se sentir demasiado o peso das sombras nem a leveza da claridade. Há horas que queríamos repletas de sons na penumbra de uma aconchegante solidão, como que o prelúdio de algo grandioso, uma valsa sem fim e sem princípio, um eterno intervalo que nos afasta das alamedas polvilhadas de cores berrantes e exageradas. Há dias em que só queríamos escutar o roçagar daquele vestido preto naquele corpo que esconde todas as cores do arco-íris.
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O quadro
Fotografia de Mariel Cortés
Entrei naquela morada sem pensar, somente para fugir da loucura em que me sentia afundar. A fachada do edifício e as pessoas que nele entravam inspiraram-me calma, normalidade, a possibilidade de impor a mim mesmo uma pausa no turbilhão que ameaçava estilhaçar-me. Nas paredes navego por obras de arte, algumas paisagens bucólicas, cenas da vida quotidiana, retratos e auto-retratos que me conciliam com a vida como ela quase sempre é ou devia ser, imagens que me devolvem ao que se pode chamar “normalidade”. Percorro todas as salas do museu até alcançar a última. Não vejo ninguém a entrar ou a sair e entro desprevenido. O quadro dilacera-me e reconduz-me aos braços da luxúria e do pecado, a paz de espírito passageira estilhaça-se nas sugestões de guerra, ódio e sexo desenfreado, alheado do amor e do prazer. Não emito qualquer som mas a única pessoa que contempla o quadro sente-me, fixa-me, transfere com o olhar toda a força da sua loucura, ignorando que, naquele preciso momento, todo o meu ser já não suporta nem mais um grama de demência.
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Terapia
Os portugueses precisam de olhar para si e perceber o que os novos tempos lhes trazem. As angústias hoje são outras, os estados depressivos alastram como um vírus imbatível. Há quem fale, há quem chore, mas desconfio que a maioria esconde a dor de sofrer sem sequer perceber porquê. A RTP, conduzida pela mão sabedora de Virgílio Castelo, teve a excelente ideia e correu o risco de levantar o véu sobre essa dor, os seus ínvios caminhos, sobre um possível tratamento/alívio da mesma. Não falo da terapia, falo de deitar cá para fora, de falar. Por mais de uma vez disse a pessoas que se afundavam nesse nevoeiro de sentimentos que, caso não quisessem falar com um profissional, que escolhessem um amigo, um bom ouvinte, para falarem, para deitarem cá para fora, para chorarem. Como diz e bem o bom do Virgílio, é na dor que crescemos, mas se queremos ser felizes precisamos de afectos, de gente na nossa vida.
“O que fazemos de mais importante é nascer e morrer, e aí estamos sozinhos. (…) Há uma rede que se vai criando, porque fazer isto tudo é uma trabalheira enorme e não tem metade da graça. Mas quando olhamos para trás e pensamos na nossa vida, apercebemo-nos que é sempre na dor que crescemos. E nesses momentos, mais uma vez, estamos sozinhos. Tudo o que é estrutural na vida é feito sozinho, mas de facto aquilo que a física quântica está a provar agora é que podemos estar sozinhos mas fazemos parte do mesmo processo e não há energia que um de nós desencadeie que não tenha uma resposta do outro lado. E por isso essa rede de afectos que vamos construindo ao longo da vida é natural. Como diz a canção brasileira, “ninguém é feliz sozinho”.
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O frio lá fora
Noites frias que nos encerram em casa. O calor do lar, o frio que deixamos nas ruas, as pessoas que se isolam na desculpa perfeita. Darmos e recebermos nem sempre é fácil, sairmos do conforto das nossas convicções e aceitarmos os outros. Como crescer sem essas trocas, sem interagir com a diferença, sem tocarmos no que não acreditamos? A crescente tentação de mergulharmos na confortável filosofia do "conhece-te a ti mesmo" não será uma muito bem encenada fuga a esse processo único de crescimento que é conhecer o mundo e os outros? Ou, simplesmente, quem se busca a si mesmo oculta em frases bonitas e conceitos inexpugnáveis a comparação com o que desconhece? Diz-me quanto te dás, dir-te-ei quem és.