Bolas e Letras
Era para ser sobre futebol e livros. Mas há tanto mundo mais, a mente humana dispersa-se perdidamente, o país tem tanto sobre que perorar, eu perco-me de amores bem para lá da bola e das letras: Evas, vinho, amor, amigos, cinema, viagens, eu sei lá!
O sinal
Escrevi o texto seguinte há dois anos. Poderia tê-lo feito hoje, pois no domingo tudo se mantinha igual, no mesmo sítio, como se o tempo tivesse parado. Os rapazes continuam a adorar o ato de depositar o papel na urna (hoje já com maior consciência da importância do mesmo), os velhos continuam velhos, de passo lento e frágil, mas decididos, os seus olhos com o brilho que, creio, acompanha sempre os olhos dos velhos, como se não existissem muito mais razões no mundo para lhes fazer brilhar a alma e iluminar o olhar. No domingo passado não choveu como há dois anos, brilhou sim um sol abrasador, talvez o mais sublime sinal de que a esperança afinal faz sentido.
“Alguns anos depois, votar na escola onde fiz o ciclo preparatório (a boa e velha “Fernando Pessoa”, aos Olivais). Ver os meus dois filhos depositarem o voto dos pais nas urnas. Cedo, que com filhos pequenos a preguiça foi encarcerada na urna. É cedo que os nossos velhos vão votar, devagar, passo frágil, mas decidido. Olhos sem brilho, cabisbaixos, como se a esperança definhasse na exacta medida dos jovens que rareiam nas mesas de voto. Os meus filhos radiantes pela nova experiência. A esperança a despontar por entre os pingos da chuva.”
Autoria e outros dados (tags, etc)
Da passagem do tempo e da vontade de o festejar
Sempre adorei as festas dos outros. Aniversários, casamentos, despedidas de solteiro, tudo o que envolvesse convívio bravo, aberto e fraterno, com boa comida e melhor bebida. Já no que toca a festejar o meu aniversário com pompa e circunstância já não o faço aí desde os 16 aninhos. Casamentos então nem vê-los, que eu gosto de arroz no cabelo mas é dos outros. Isto a propósito de mais um aniversário que amanhã chega e que conto passar discretamente, sem festividades nem grandes alaridos. Sempre fui dizendo que sou assim porque não gosto de palmadinhas nas costas em demasia nem de ser o centro das atenções. Não será defeito, talvez apenas feitio. Mas os anos passam e o auto-conhecimento das razões que pensávamos bem sabidas aprofunda-se. Será que a idade a avançar piora ainda mais esta má relação que tenho com os meus aniversários, mesmo que inconscientemente? Sim, é possível. Se há 30 anos um aniversário era promessa de mais uns centímetros, se há 25 era esperança de mais liberdade (isso, chegar mais tarde a casa), há 20 já a coisa piava mais fino, pois o peso da responsabilidade já amachucava e me entregava ao mundo. Hoje vejo mais além e, lá à frente, não vejo mais centímetros ou mais liberdade, mas sinto ainda mais o peso da responsabilidade agora que tenho que zelar pelo sono e pelos sonhos dos meus filhos. É mau, isso? Não, é o que é e o que tem que ser, e pode ser encarado com um sorriso nos lábios. Só não me peçam para lançar serpentinas, explodir com garrafas de champanhe e apagar velinhas. O que é demais é demais. Já agora, obrigado aos que me aturam vai para uma data de anos, alguns deles, pobres coitados, fará amanhã 42 anos. Beijos e abraços que amanhã a tasca está fechada, não para luto mas para profunda reflexão (ou para por o sono em dia).
Autoria e outros dados (tags, etc)
Coisas boas que a idade e o cansaço trazem
Autoria e outros dados (tags, etc)
Ground control to major Tom (41)
Ontem, no dia em que fiz 41 anos, soube, como o mundo, como todo o mundo, que David Bowie abandonara o mundo a que tanto dera. Não sinto a idade, nunca a senti, mas sinto que com os anos que passam, lentamente, o mundo vai mudando. Vai-se o génio de Bowie e não me parece que haja quem o substitua à altura. Vai-se dissolvendo a ingénua infância dos meus filhos e não sei se para a frente os seus sorrisos continuarão a espelhar tanta pureza, tanta alegria sem grilhetas e sem limites. Pode parecer que há algum pessimismo nesta palavras, mas não, o que há é a crescente percepção de que envelhecer é saber adaptarmo-nos ao que é e ao que vem, nunca esquecendo o que foi e que para sempre nos marcará.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Da esperança
Alguns anos depois, votar na escola onde fiz o ciclo preparatório. Ver os meus dois filhos depositarem o voto dos pais nas urnas. Cedo, que com filhos pequenos a preguiça foi encarcerada na urna. É cedo que os nossos velhos vão votar, devagar, passo frágil mas decidido. Olhos sem brilho, cabisbaixos, como se a esperança definhasse na exacta medida dos jovens que rareiam nas mesas de voto. Os meus filhos radiantes pela nova experiência. A esperança a despontar por entre os pingos da chuva.
Autoria e outros dados (tags, etc)
A Europa na sala do condomínio
Há um bom par de dias, uma simpática Senhora, recente vizinha de respeitável idade, fez questão de desejar boa sorte à minha pessoa e respectiva família na nova morada olivalense. Disse-me que durante 50 anos os vizinhos naquele prédio tinham sido sempre os mesmos, solidários, amigos, ajudando-se sempre entre si, como devia ser num prédio com gente boa. Agora, o prédio começava a renovar-se, e percebi no seu olhar trémulo que receava que esse espírito se fosse perdendo. Disse-lhe que vivera muitos anos nos Olivais, tirando uma interrupção de meia dúzia deles, que conhecia esse espírito de vizinhança e que pela minha parte fazia questão em mantê-lo. Ela sorriu condescendente, como que suspeitando que o ritmo de vida actual não me permitiria honrar a minha palavra, simplesmente porque na hora H estaria no trabalho ou demasiado atarefado para me lembrar desse compromisso. De qualquer modo, a amargura do sorriso teria como causa próxima a sabedoria que lhe dizia que os anos passando levariam consigo os bons hábitos de outros tempos. Gostava muito que este prédio não fosse uma Europa de nações desunidas e que as fracções de condóminos mais frágeis não se tornassem em Grécias esquecidas na frieza do cimento. Trabalhemos como alemães, mas sintamos como portugueses de há 50 anos, seria o mote a seguir. Vamos lá a ver o que diz o Eurogrupo da sala dos condóminos.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Até à última gota
Por entre o rebuliço que se vivia no café Lehmitz, na cidade de Hamburgo, algures entre o ano de 1967 e 1970, o fotógrafo Anders Petersen imortalizou este momento mágico. Velhos com sangue quente na guelra, com a marotice da juventude, com uma agressividade erótica que muitos pensavam morta, nomeadamente uns certos julgadores deste país de brandos e mornos costumes. Os prazeres da vida não deviam ter prazo, sob pena de os sonegarmos a quem disfruta da idade da sabedoria. Para abdicar das loucuras que nos fazem sentir vivos mais valia reduzir a esperança média de vida e poupar uns cobres aos cofres da Segurança Social. Vejam lá isso, amigos da terceira e bela idade, não se esqueçam de sugar o tutano do osso da vida até ao fim da viagem!
Autoria e outros dados (tags, etc)
Possível diálogo entre Pablo Picasso e Brigitte Bardot
- Não consigo perceber o que receias, Brigitte. Estás no auge da tua beleza, este é o momento a imortalizar, minha querida.
- Não quero, sei que não me sentirei bem nua durante tantas horas, exposta, indefesa, diante de ti, diante de qualquer homem.
- Minha preciosa menina, a nudez é o teu estado mais natural, é, desde o primeiro minuto, desde o primeiro choro, a emanação de toda a pureza do ser humano. Quanto a mim, meu doce, não tens que te preocupar, já vi demasiadas mulheres nuas para me deixar impressionar ou excitar por isso. Para mim será como ver despida a minha filha a quem vou dar banho.
- Queres com isso dizer que o meu corpo não te excita?
- Poderei deleitar-me interiormente com a visão de tão rara beleza, mas será mais um agradecimento à natureza por não desistir de tentar alcançar a perfeição do que um qualquer arrobo de excitação física. Estou velho, Brigitte, já não sou ameaça para velhas mulheres quanto mais para pepitas reluzentes como tu.
- Desculpa Pablo, não estou certa de que posar nua diante de alguém a quem não desperto desejo vá dar de mim a melhor imagem. Acho que por mais belo que fosse o retrato que de mim pintasses lhe faltaria vida, vibração, calor.
- As mulheres, minha querida, foram as mulheres que me sugaram a energia toda com essas eternas dúvidas e contradições. Vou-te pintar na mesma, bastou-me esta conversa para te despir com os olhos muito além da pele, bem mais perto do teu âmago do que imaginas.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Catherine & Kate
Como dificilmente enjoo das imagens de sonho que a vida me proporciona, aqui fica mais uma prova irrefutável de que a beleza nunca esmorece e dificilmente envelhece. Catherine Deneuve, já não uma jovem senhora irresistível, mas agora uma mulher madura a quem os anos burilaram os traços de beleza. A seu lado, a eternamente jovem, a mulher felina que mesmo sem o querer transpira sensualidade, emite sons de lençóis amarfanhados e cheira a pecado – Kate Moss.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Vinhos velhos, novos amigos
Este fim-de-semana foi temperado pelo prazer que é degustar vinhos tintos velhos. Falo de um Gaeiras de 79 e de um Frei João de 78, néctares que absorveram os sabores e os aromas próprios de quem vive muito e que confinaram em si a riqueza que só a experiência de vida pode dar. Fechado e austero o Gaeiras, aqui e ali com uns aromas a suor de cavalo, a dar nota de que a vida não lhe foi fácil, de que a rolha deveria ter isolado melhor o precioso líquido da fealdade do mundo exterior. Contou-me o proprietário da preciosidade que mais tarde, já com algumas horas passadas, o vinho quase que ressuscitara, como se apenas depois da necessária adaptação à crua realidade se permitisse exibir em todo o seu esplendor. O Frei João não esteve de modas e apresentou-se logo em grande forma, amaciado pelo tempo e temperada a força do álcool pelos anos que a fruta e a madeira levaram de namoro. Não há nada de novo que contenha a beleza do tempo que só o tempo traz, nada há de velho que não encerre em si uma boa dose de beleza.